A salvação do design

Há apenas uma semana, se alguém me perguntasse que livro eu levaria para uma ilha deserta, responderia, sem titubear, “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortazar. É um romance cujos capítulos estão estruturados para serem lidos em qualquer ordem. Cada seqüência que o leitor escolhe gera uma história diferente. Muitos livros em um. Ideal para uma ilha, não é?

Pois agora mudei. Levaria mesmo é o “Aprender a viver: filosofia para os novos tempos”, do filósofo francês Luc Ferry, com o qual estou encantada. Há tempos não encontrava um livro tão transformador. Luc apresenta, de maneira que um leigo consegue entender, nada menos que a história do pensamento ocidental. Finalmente consegui vislumbrar uma ordem nos capítulos de todos os livros sobre o assunto que eu havia lido antes.

O autor não foge à pergunta clássica: “para que serve a filosofia?” Para Luc, a função essencial desse exercício de pensamento é nos dar algum conforto, alguma salvação, algum sentido para a existência, alguma saída para o medo da morte.

Os estóicos, precursores da filosofia grega, acreditavam que a salvação estava no divino (que era o próprio mundo). O universo era belo, perfeito, harmônico e bom. Devíamos nos conformar com tudo o que acontecia conosco, pois o divino assim o queria e a morte nada mais era do que uma transformação. A salvação dependia de cada um descobrir um meio, usando a razão, de se integrar ao universo. Pena que ao morrer, a pessoa perdia a sua identidade para ser mais uma partícula do todo. Não muito animador, mas, enfim, era o que havia.

Depois veio o revolucionário Cristianismo, onde o divino não era mais o universo em si, mas um Ser externo, Deus. Ele prometia a vida eterna, a ressurreição, o reencontro com os entes queridos e, principalmente, a manutenção do indivíduo como um ser único, não mais como uma simples partícula do universo. Mas quanto custaria tanta maravilha? Simples, o cristianismo lhe oferecia tudo isso em troca da sua razão. Para ganhar vida eterna, basta que você não duvide mais, não questione, não pense. Apenas acredite. O preço é a troca da razão pela fé. A responsabilidade agora é de Outro; terceirizamos a nossa salvação.

Essa tese dominou a história do pensamento até o Renascimento, quando os avanços da ciência mostraram que nem o universo era tão belo e harmônico, como queriam os estóicos, nem a terra era o centro do universo, como queriam os cristãos. Comprovou-se cientificamente o caos, as assimetrias, as desordens, as injustiças e as feiúras do mundo. Argumentos que eram praticamente leis há séculos, foram todos por água abaixo pelos telescópios de Galileu e Copérnico, e os Principia de Newton.

Nessa época, o homem ficou sem chão, com suas referências todas dizimadas pela tábula rasa de Descartes, que consistia em zerar as certezas e duvidar de tudo. A única coisa indubitável era que, se penso, então é porque existo. Filósofos modernos, como Kant, introduziram assim o Humanismo, que nada mais era do que uma forma de centralizar todas as referências de pensamento no próprio homem. Há aqui uma bela discussão sobre o que diferencia o homem dos outros animais. Voltava-se à razão para tentar descobrir as relações de causa e efeito no mundo a um ponto que culminou no materialismo.

Sobre a salvação, o homem humanista encontra maneiras de obter a imortalidade envolvendo-se em causas maiores que a vida, pelas quais vale a pena até morrer. E encontrou meios de se tornar eterno por três modos bastante discutíveis, que o autor chama de “religiões de salvação terrestre”: o patriotismo (as guerras em nome da pátria, o herói que entra para a história); o comunismo (onde seus líderes, como Stalin, são idolatrados como deuses): e o cientifismo (vale tudo em nome do progresso da ciência). Na verdade, o que diferenciava os cristãos dos ateus era apenas o nome do deus que cada um adorava. No fundo, eram todos crentes.

Foi nesse mar de religiões terrestres que apareceu Nietzche e destruiu tudo de novo. Mostrou que esses ídolos da salvação eram de barro, e contestou tudo o que se acreditava antes, inclusive o conceito de salvação. Nietzche valorizava, sobretudo, a vida. Dizia que essa busca insana pela salvação nos impedia de viver o presente, de fruir o momento. Chamava de niilistas aqueles que negavam a vida real em favor de alguma outra causa ou ideal. Ele falava de viver “em grande estilo”, equilibrando as forças reativas (a lógica, a razão) e as ativas (a sensibilidade, a arte). É no domínio desse caos interno que residem o poder e a felicidade (esqueça a salvação). A filosofia pós-moderna, além de Nietzche, tinha em Freud, Lacan e Marx a força desconstrutora dos ícones estabelecidos.

Os filósofos contemporâneos que pensam o hoje, dividem-se entre os que dedicam-se a juntar os cacos e entender o que sobrou, e os que ainda insistem que o trabalho de demolição ainda não acabou. Fala-se do mundo da técnica, do descontrole, de um humanismo pós-Nietzche e a discussão vai ficando cada vez mais complexa e difícil de acompanhar. O Cristianismo é irresistivelmente confortável, mas não consigo evitar de questionar, desconfiar, duvidar, de modo que ainda não sei como vou me salvar. De qualquer maneira, não deixa de ser instigante pensar a respeito.

Mas o que é que o design (do título dessa coluna), tem a ver com esse papo todo? Bom, é que lá pelas tantas, o livro mostra os sofistas de um ponto de vista que eu nunca tinha pensado. No livro Design desmodrômico, eu digo que a palavra sofisticado vem de sofista, aquele que engana, e, que, portanto, não seria um adjetivo muito adequado ao design.

Luc Ferry, apoiado em Nietzche, mostra os sofistas como aqueles que não estão preocupados com a verdade, mas com as sensações e com a arte. As palavras não seriam apenas um meio de comunicar, mas um fim em si, já que elas provocam efeitos estéticos. Os sofistas não tinham intenção de fazer revelações e contar verdades, mas de seduzir, persuadir, inebriar, produzir efeitos quase físicos em um auditório que podia ser levado à adesão pela forma como as palavras eram artisticamente tecidas e apresentadas. O sofista, nesse caso, não é mais um mentiroso, mas sobretudo um esteta. E o que é um designer senão um mestre da sedução, do despertar dos sentidos, do domínio da percepção?

Pois é. Ao contrário do que eu pensava antes, talvez o design seja, pelo menos, um pouco sofisticado…

6 Responses

  1. 21 março 2011 at 9:43 pm

    Estou pensando em ler os dois. 🙂

  2. ligiafascioni
    Responder
    21 março 2011 at 9:45 pm

    São bem diferentes, mas valem a pena. O “Aprender a viver” já tem o volume II, que fala de mitologia grega. Imperdível mesmo!

    “O jogo da amarelinha” é ótimo, mas é mais literatura. Recomendo mesmo, você vai gostar dos dois!

    Abraços!

  3. 22 março 2011 at 5:37 pm

    Quem sabe o 8 está se fechando e então teremos um “Novos-Estóicos” pela frente?

    • ligiafascioni
      Responder
      22 março 2011 at 5:43 pm

      Aahahah… acho que hoje tem de tudo: cristão, estoicos, novos-estoicos, niilistas… tem para todos os gostos. Eu ainda estou procurando minha turma…ahaha

  4. 23 março 2011 at 10:22 am

    Oi Lígia vou procurar as indicações tbm … Parecem interessantes ! Beijo e obrigada pela resposta !

  5. Nathálya Vasconcelos
    Responder
    29 março 2011 at 1:17 pm

    Tenho “O jogo da Amarelinha”, e parei nas primeiras páginas, não me lembro por quê. Vou tratar de criar juízo e voltar à leitura, que é realmente saborosa.

    Parabéns pelo texto! Encontrei seu site hoje, e já li algumas coisas por aqui. Gostei, sobretudo, do seu pensar: construído e calculado, sem excessos. Apenas natural.

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