A tal da média

Essa é uma daquelas obras que fazem a gente rachar a cabeça e questionar das coisas que achamos naturais, mas não são de maneira alguma. Como engenheira, o que senti foi como se alguém tivesse tirado o chão sob meus pés. Mas confesso, adorei a sensação!

The End of Average: How to Succeed in a World that Values Sameness”, de Todd Rose, é separado em três partes: a era da média, os princípios da individualidade e a era do indivíduo.

A ERA DA MÉDIA

Média é uma coisa não natural para nós que parece que estar acima/abaixo/dentro da média são conceitos que sempre existiram, não é? Pois nem sempre foi assim.

Todd nos conta que tudo começou em 1823, quando um gênio da matemática chamado Adolphe Quetelet conseguiu convencer o governo da Holanda a construir um super observatório na Bélgica e dar a ele o cargo de diretor. Só que durante a construção, houve uma revolução e as tropas invadiram a obra, deixando o cientista sem saber quando e se iria haver observatório. 

Quetelet não se deixou vencer por essa dificuldade; estando a Europa na primeira onda da Big Data, quando pela primeira vez na história se começou a reunir estatísticas diversas em grande escala, o jovem resolveu usar seus conhecimentos matemáticos para aplicar nas sociedades humanas. Vários astrônomos calculavam a posição onde iriam aparecer futuramente determinados corpos celestes, mas sempre havia variações nos cáculos quando se comparava um com o outro. A solução era reunir todas as medidas e calcular a média, que resultava numa estimativa mais perto da real. Esse conceito de média matemática usada na astronomia fascinava tanto Quetelet que ele o levou para todas as áreas, revolucionando a ideia que a sociedade tinha sobre o indivíduo.

Inserido no primeiro escalão do governo belga, Quetelet calculou a média de todos os dados possíveis e imagináveis com relação aos seres humanos e calculou como deveria ser o “homem-médio”, ou seja, aquele que se aproximava mais da perfeição e da Vontade de Deus. Os demais eram erros ou desvios. O BMI (Índice de Massa Corporal), por exemplo, usado até hoje, é calculado usando como referência o homem-médio e a mulher-média. Aliás, todos os projetos de design, tratamentos de saúde, análises de comportamento, enfim, quase tudo que se possa imaginar, usa o conceito de média como principal referência. 

O problema é que o homem-médio é uma obra de ficção matemática. Assim como nenhuma mulher tem 2,3 filhos, nenhum piloto se encaixava nas medidas dos cockpits dos aviões de guerra desenhados para o homem-médio.  

Aí veio o britânico Francis Galton, em 1851, com sua interessantíssima teoria. Fã de Quetelet, Galton só discordava do Mestre numa coisa: para ele, o homem-médio não era o ideal, mas o comum, da classe baixa, que estava agora votando e levando a Inglaterra à ruína. Para ele, as classes mais altas eram a melhor parte da sociedade. Galton advogava que era possível se desviar da média para cima, e ser considerado “Eminente” ou para baixo, e ser considerado “Imbecil”. Para ele, os Eminentes, os Medíocres (na média) e os Imbecis eram tipos diferentes de seres humanos. Assim, ele transformou a média, ou seja, o considerado  normal, no conceito de medíocre que conhecemos hoje. E o desvio da média foi usado para fazer a classificação de toda e qualquer variável.

Galton acreditava que se alguém estava acima da média em um quesito, automaticamente estava acima nos outros quesitos também; ou seja, se a pessoa era mais inteligente que a média, então ela também era mais alta e rápida que a média (sabe-se lá que distorção mental ele conseguiu fazer para encaixar isso, mas, né?). Os Eminentes, na teoria de Galton, representavam o ápice: eram mais inteligentes, mais bonitos, mais talentosos, mais fortes, mais éticos, mais corajosos e mais honestos. 

A maneira como hoje se tratam as informações em todas as áreas, seja na ciência, na educação, na administração, no desempenho esportivo e até na inteligência (vide o malfadado teste de QI), enfim, quase tudo o que a gente mede, baseia-se nesses dois conceitos fundamentais: o da média (Quetelet) e o da classificação (Galton). Toda a ciência estatística usa a mesma abordagem.

Frederick Taylor foi mais além; ele inventou o conceito de tarefas padronizadas (baseadas no tempo e desempenho de um trabalhador médio) e separou os pensantes e planejadores (gerentes) dos autômatos (trabalhadores braçais), dando origem ao que conhecemos hoje como Taylorismo. A educação foi pelo mesmo caminho, com as provas padronizadas, as aulas com conteúdo e tempo pré-estipulados, etc.

Eis que o tempo passou e, como convém à boa ciência, pesquisadores de diversas áreas começaram a questionar o modelo de média e ranking discutindo se essa era mesmo uma forma confiável de análise. E agora é que começa a parte interessante.

Peter Molenaar, um psicólogo holandês, era também amante da matemática e entusiasta dos modelos estatísticos para a determinação e avaliação de comportamentos. Estava quase a ponto de se aposentar compulsoriamente como professor titular da Universidade de Amsterdam, em 2003, quando teve que substituir um professor numa disciplina. Foi relendo a bibliografia que ele percebeu um enorme furo na base de todas as pesquisas acadêmicas na sua área a ponto de mudar toda a sua carreira. A principal referência na área de estatística para testes mentais, de Frederic Lord e Melvin Novick, dizia que o único meio de determinar o verdadeiro escore de uma pessoa num teste é repetindo esse teste muitas vezes com a mesma pessoa, até que as influências temporais (se estava nervosa, distraída, com dor de barriga, triste ou de mau-humor) se anulassem na média do resultado. Como na prática isso era impossível (não dá para apresentar o mesmo teste, pois a pessoa já vai saber de antemão as perguntas), a alternativa apresentada como válida era, em vez de testar uma pessoa inúmeras vezes, testar muitas pessoas uma vez só e fazer a média.

Só então ele se deu conta do absurdo da questão, em que se pretendia entender um indivíduo ignorando sua individualidade. Foi aí que Molenaar desenvolveu sua teoria da chave ergótica, que tinha duas condições para prever o comportamento de um indivíduo baseado na média de um grupo: 1) que cada membro do grupo fosse idêntico; 2) que cada membro do grupo permaneceria igual no futuro. É claro que nenhum grupo humano se encaixa nessas condições (até porque a teoria foi emprestada da física dos gases); então não era possível prever o comportamento de um indivíduo baseando-se no estudo de um grupo. Bom, o professor foi rechaçado por seus pares acadêmicos como um louco e acabou saindo de sua universidade, sendo convidado para continuar suas pesquisas nos EUA, onde criou uma nova disciplina: a ciência do indivíduo.

Um dos princípios do método da média é agregar os dados de vários indivíduos, para depois analisá-los em grupo. A ciência do indivíduo faz o contrário: analisa completamente um indivíduo e depois agrega algumas de suas características com as de outros de mesmo perfil, ou seja, analisa e depois agrega. Então, o que a ciência do indivíduo faz é tentar encontrar meios de combinar os padrões individuais em estudos coletivos.

OS PRINCÍPIOS DA INDIVIDUALIDADE

A questão é que o modelo da média tende a reduzir seres complexos como os humanos em apenas uma variável unidimensional (tipo um teste de QI ou a nota de uma prova). Não tem como dar certo mesmo.

Um dos exemplos mais bacanas é o da consultoria Delloite, que usava uma classificação calculada a partir da média de vários fatores para avaliar o desempenho de um funcionário, sistema usado até 2012 por 60% das 500 maiores empresas da Lista Fortune do Wall Street Journal.

Classificar talentos e performances individuais usando somente um número parecia uma solução lógica, justa e simples. Só que, na prática, não era o que se observava. Nem sempre quem tinha uma classificação excelente tinha um desempenho correspondente, e o pessoal do RH começou a ver que os talentos que eles tinham dispensado estavam indo muito bem em outras empresas. Entre tabelas, gráficos e planilhas, a Deloitte constatou que gastava dois milhões de horas a cada ano para calcular esses números, e que eles não estavam servindo para muita coisa. 

Em 2013, a Delloite, a Microsoft e a Google aboliram completamente esse método de avaliação. Elas se deram conta de que estavam aplicando o método Galton ao pé da letra: quem estava acima da média provavelmente devia ser superior em tudo; quem estava abaixo, um desastre de incompetência. A média, bem, era medíocre.

O problema é a abordagem unidimensional para um problema multidimensional. Por exemplo, se você perguntar se alguém é grande, provavelmente vamos considerar que ela é alta, pesa muito, tem mãos grandes, enfim, todas as dimensões dela são grandes. Em seres humanos, isso varia muito. A pessoa pode ser alta e muito magra ou ser pesada e baixa. Pode ainda ser alta e ter mãos pequenas (aí você erra comprando uma luva tamanho grande achando que a pessoa é grande). Ou ter as mãos e pés compridos, mas as orelhas pequenas. Não há uma regra e a correlação entre uma medida e outra entre seres humanos é extremamente fraca; não dá para dizer o tamanho do pé de uma pessoa sabendo o comprimento da coxa, por exemplo. E é assim para todas as características humanas. Então “grande” não traduz a ideia. Pode ser uma aproximação para se ter uma ideia geral num grupo, mas não é completa para definir um indivíduo. Não é possível usar apenas uma variável unidimensional para avaliar algo complexo e cheio de irregularidades, como é o ser humano. 

Para se ter uma ideia, as cabines dos pilotos de caça da força aérea americana foram construídas baseadas no homem-médio. Estudos posteriores mostraram que não apenas o homem-médio não existia em todas as nove dimensões consideradas, como menos de 2% dos pilotos estavam dentro da média de pelo menos 4 dimensões. Só depois de anos de acidentes e de estudos é que entendeu-se que as cabines precisavam ser ajustáveis (assim como os bancos de carros e volantes) em várias dimensões.

Mesmo profissionalmente, um executivo pode ser excelente gestor de projetos e péssimo para falar em público. Ou ter um talento enorme com pessoas e nenhum com tabelas e gráficos. Avaliando por uma média simples, não se consegue concluir nada de útil. Um número só é muito pouco para traduzir os talentos, competências e capacidades de uma pessoa.

Uma empresa americana de pequeno porte, a IGN, especializada em videogames e outras mídias, criou um método de contratação considerado sucesso: eles simplesmente não permitiam que o candidato enviasse seu currículo. Em vez disso, os pretendentes diziam porque queriam trabalhar naquela empresa e respondiam 4 questões que testavam sua habilidade em programação. Os selecionados faziam parte de um programa de seis semanas (remunerado) em que os gerentes avaliavam o desempenho dos candidatos na prática. Em 2011, 104 pessoas se cadidataram; 28 foram aceitas para o programa de 6 semanas e no final foram contratadas 8 pessoas  devido ao excelente desempenho (a intenção inicial era contratar uma ou duas). Depois se descobriu que somente metade tinha graduação na área técnica; ou seja, dificilmente seriam contratadas pelos trâmites usuais.

Outro conceito muito interessante é o princípio do contexto. Aí vem a crítica a todos os métodos que definem personalidade usados pelos programas de Recursos Humanos.

Na ânsia de simplificar processos complexos reduzindo-os a uma variável, as pessoas acabam sendo classificadas como extrovertidas ou introvertidas, conservadoras ou inovadoras, planejadoras ou executoras, agressivas ou calmas, enfim, uma infinidade de combinações binárias que desconsideram completamente o contexto.  É a prática corrente de fazer julgamentos gerais baseados em um conjunto de informações muito limitada.

Esses testes de personalidade com suas abordagens rotuladoras que independem das circunstâncias partem de uma crença conhecida como Pensamento Essencialista.

A questão é que se o objetivo é prever comportamentos individuais, o contexto é fundamental na análise, não há como ignorá-lo. O traços da personalidade do ser humano nunca são absolutos; eles interagem com o ambiente e se adaptam. Estudos bem completos com mais de 14 mil horas de observações registradas e analisadas de 84 crianças mostram que cada uma exibe uma personalidade diferente dependendo do tipo de situação à qual é exposta. Pode ser introvertida em casa e extrovertida com os amiguinhos, mas novamente introvertida com estranhos, enfim. Não há regra. Aliás, há. A única conclusão segura é que para o mesmo contexto, pode-se esperar o mesmo comportamento. 

Essa conclusão ajuda muito mais na contratação de um profissional do que a declaração de que ele é “desafiador, proativo e extrovertido”. Sabendo que ele lida bem com situações de risco e costuma ficar calmo ou que se sente completamente à vontade em grupos pequenos, por exemplo, fica muito mais fácil ampliar as situações onde ele pode desempenhar melhor e minimizar as que não vão ter uma resposta adequada para a empresa. Assim, em vez de descrever o perfil do profissional que deve preencher a vaga, melhor descrever exatamente o trabalho que precisa ser feito e em quais contextos. Assim a chance de encaixe aumenta muito.

O mesmo ocorre com o desenvolvimento humano; cada um constrói o seu próprio caminho e sua própria maneira de evoluir, tanto biológica, como mental, moral e profissionalmente. Forçar todos a fazerem o mesmo caminho calculado por uma média hipotética é um compromisso que pode prejudicar muitas vidas promissoras.

Existem muitas outras associações automáticas que se faz e que não contêm nenhum fundamento. O de que o mais rápido é melhor, por exemplo. Baseado nesse princípio, alunos que resolvem mais rápido uma questão são mais inteligentes. Estudos mais cuidadosos demonstram que a correlação, apesar de aparentemente óbvia (pois fomos levados a acreditar assim), nesse caso, não existe.

A ERA DO INDIVÍDUO

O livro traz muitos exemplos interessantíssimos, principalmente na área de educação, de maneiras de melhorar o desempenho de todos com pequenas modificações práticas (mas grandes modificações na forma de pensar). Há muitas críticas ao sistema de produção de diplomas, em que o número de horas exigidas para o bacharelado, por exemplo, é uma constante baseada na média, independente da complexidade do curso.   

Bem, Rose não afirma que o modelo baseado na média é uma tragédia. Foi muito útil em determinado período da história, apesar do alto custo que foi a perda da individualidade e preciosos talentos. Foi criado numa época em que não havia como tratar dados individuais em grande volume; era preciso simplificar para conseguir trabalhar.

A questão é que não há mais necessidade e nem sentido continuar a usá-lo, uma vez que temos hoje em dia tecnologia e conhecimento suficientes para tratar grandes volumes de dados de maneira mais produtiva e inteligente, assim como adaptar individualmente os mais diversos sistemas sem grande dificuldade. 

Se até robôs hoje são inteligentes e parametrizáveis, por que o ser humano tem que continuar a caber numa caixinha fictícia, calculada de maneira a ignorar sua individualidade, que é justamente o que o diferencia de uma máquina?

Temos que repensar a cultura da média e entender que essa maneira de ver o mundo está totalmente obsoleta.

3 Responses

  1. ENIO PADILHA
    Responder
    14 novembro 2018 at 11:29 am

    Lígia, querida. Obrigado por mais uma belíssima resenha.
    Eu enfrentei essas questões quando fiz o Mestrado em Administração. Eu era o único engenheiro numa turma de mais de vinte profissionais da área de humanas. Como todo engenheiro (“médio”) tinha grande resistência a reconhecer o valor de qualquer pesquisa que não estivesse baseada e sustentada em números. Tive de estudar muito para entender como funcionam as pesquisas qualitativas e como o que se estuda para o indivíduo (ou para uma organização específica) pode ter valor científico e ser passível de extrapolação.
    No final minha pesquisa (e minha dissertação) acabou sendo um estudo de casos múltiplos, ou seja: um estudo de casos isolados e que pela maneira (científica) como foram abordados podem produzir resultados que se aplicam a organizações semelhantes.

  2. 15 novembro 2018 at 6:49 am

    Entendo o que você quer dizer, amigo! Quando estudei marketing, fiquei chocada ao descobrir que não existiam respostas certas e erradas para cada questão…rsrs… imagino o seu drama! Mas tenho certeza de que o trabalho deve ter ficado sensacional (se conheço você, deve ser usado como referência até hoje na faculdade)…

  3. Graça Taguti
    Responder
    15 novembro 2018 at 9:45 am

    Resenha abrangente, instigante e muito elucidativa. Obrigada, querida, pelos constantes ensinamentos! Grande beijo 😚😉

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