As tais regras

Imagem: Zona 13 Studio

Acontece mais vezes do que eu gostaria, mas quando vejo um trabalho gráfico grotescamente desalinhado, com proporções erradas e um indisfarçável desprezo pela ergonomia, é comum ouvir o seu orgulhoso autor (profissional ou estudante) declarar que ficou assim porque ele é inovador e gosta de quebrar as regras.

Quebrar as malditas e famosas regras, além de ser podre de chique, ainda nos dá uma maravilhosa sensação de transgressão. Quem não gosta?

Pois então. O negócio é que quebrar regras (pelo menos as do design), não é tarefa para amadores. Não basta cortar o cabelo no melhor estilo emo e sair arrastando o mouse descontroladamente para achar que está dando sua contribuição pessoal contra o mercado, culpado de todos os males da humanidade, da caspa aos bugs do CorelDraw.

Para mim, o tal infrator deveria ter pelo menos um histórico mínimo de convivência com as tais regras antes de assassiná-las alegremente. Deveria conhecer seus hábitos, costumes, dificuldades, crises. Ser confidente, parceiro e cúmplice dos conceitos. Frequentar as entranhas da semiótica, ser amante contumaz da teoria das cores, jantar todas as noites com a ergonomia, participar de orgias com a tipografia, tudo isso sem perder de vista as proporções e os alinhamentos, normalmente mais ariscos. Falo de contato diário mesmo, de sentir o hálito, íntimo de enjoar. Até que, com o tempo, a relação se desgastaria e o designer-inovador resolveria dar um chega-pra-lá fatal nessa galera espaçosa.

Um crime sim, mas plenamente justificado pela paixão, pela fadiga, por um propósito, pela libertação. De preferência, quebrar o pescoço de uma por uma em projetos alternados (regricídio em massa é para ditadores surtados). Melhor quanto mais premeditado, mais sutil, mais noir, mais cheio de graça. Ataques vulgares de peixeira não cativam o público (nem os clientes). Para crimes elegantes é preciso cultura e sangue-frio.

O que mais se vê, infelizmente, é designer matando a pauladas perfeitas estranhas, regras que ele nunca viu antes (ou não se lembra). Sujar as mãos para dar um fim cruel a desconhecidas, vamos combinar, carece de um mínimo de dignidade, né? Um verdadeiro barbarismo para quem se diz profissional. Se o sujeito não conhece as vítimas, então elas não lhe incomodam, não existem para ele. Como é possível então quebrá-las, amassá-las, picá-las, estraçalhá-las ou o que for?

Tipos assim não quebram regras. O ar blasé, na verdade, esconde uma profunda ignorância das coisas do mundo em geral e da sua profissão em particular. Puro blefe.

Comigo esse papo de quebrar regras não pega não. Além do mais, detesto covardes.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

*****

PS: Esse texto foi publicado originalmente em janeiro de 2008. O Prof. Ricardo Martins, na ocasião, chamou atenção para o fato de que, em design, não há regras (específicas), mas princípios (gerais) que norteiam o desenvolvimento trabalho. Só que trocar, no texto, a palavra regra por princípio, perderia um pouco da graça, ainda mais porque a expressão que as pessoas usam é “quebrar regras” mesmo. Então, entendam por favor a licença poética e considerem que onde está escrito regras, leia-se princípios, ok?

6 Responses

  1. 20 fevereiro 2011 at 6:50 pm

    Beleza de texto! Isso acontece frequentemente com fotógrafos e cinegrafistas que resolvem “inovar” fotografando ou filmando com a câmera inclinada lateralmente (roll) e até mesmo renderizações de trabalhos em 3D. Ignoram completamente nosso sistema vestibular (não o da faculdade, o do cérebro). As imitações baratas da revista Caras (desculpe o trocadilho) estão aí. Um porre.

  2. 20 fevereiro 2011 at 7:16 pm

    Ótimo texto, sempre concordei que antes de “fugirmos do quadrado”, devemos achá-lo e conhecê-lo, para aí sim nossa subversão ter valor.
    Até.

  3. 20 fevereiro 2011 at 8:59 pm

    concordo em termos … porque quando se fala em ter coragem pode se pensar nos dois sentidos da palavra, tanto coragem em se continuar trabalhando do mesmo jeito que os outros como a tão e talvez muitas vezes em certos casos a mal vista coragem de pessoas que querem arriscar fazer um trabalho e acabam com isso quebrando as regras que não possuem a intimidade necessária para tal … mas eu concordo com você em muita coisa … huahuahuahahauha

  4. 20 dezembro 2011 at 8:10 pm

    Concordo plenamente com texto, (na minha opinião) as regras só podem ser quebradas pelas pessoas que as conhecem e com pleno domínio, pois, não se pode quebrar aquilo que não se conhece…soa como uma desculpa.

  5. 16 junho 2013 at 8:44 pm

    Simplesmente divino texto Ligia. Adorei. É uma pena que tantos, tantos profissionais de tantas áreas – alguns nem tão “profissionais” assim… – façam e desfaçam do básico – as regras, os princípios… – para se jogarem sem pensar no fosso da “transgressão”. Quem pode e sabe transgredir, ótimo. Se não, leiam e sigam as regras, por favor…
    Abs!

* All fields are required