Cerveja é coisa de mulher

Amanda Reitenbach, durante a cerimônia de premiação do Concurso Brasileiro da Cerveja, primeira e única competição mundial sob a liderança de mulheres. Crédito: Daniel Zimmermann
Amanda Reitenbach, durante a cerimônia de premiação do Concurso Brasileiro da Cerveja, primeira e única competição mundial sob a liderança de mulheres. Crédito: Daniel Zimmermann

Acredito que o mundo só terá futuro se as mulheres se apoiarem mutuamente e formarem uma grande rede de suporte mútuo onde todas se sintam seguras e confiantes para seguir o que decidirem para suas vidas.

A Amanda Reitenbach é uma dessas poderosas que ousou entrar num campo tradicionalmente dominado por homens (basta lembrar que as cervejarias, pelo menos quando eu morava no Brasil, desconsideravam completamente as mulheres como consumidoras ao colocar sempre modelos sexies usando biquínis minúsculos em suas campanhas publicitárias; tomara que tenha mudado) .

Pois bem, a Amanda está fazendo história e penso que merece demais ser conhecida e apoiada. Se eu fosse você, continuava a ler o post abaixo com uma entrevista com essa linda que, tenho certeza, você também vai passar a admirar. De quebra, ainda vai aprender um monte de coisas interessantes sobre essa bebida tão antiga!

Amanda Reitenbach fala sobre desafios e perspectivas das mulheres no mercado cervejeiro

Para CEO do Science of Beer, ambientes cervejeiros precisam evoluir na questão da diversidade

Cerveja é coisa de mulher, pelo menos é o que nos diz a História. Das sumérias, mesopotâmicas e egípcias que fabricavam as primeiras cervejas que se têm registro; passando pelas “ale wives” inglesas, e pela figura de Hildegarda de Bigen, a monja alemã que descobriu as propriedades conservantes do lúpulo, a relação das mulheres com a cerveja sempre esteve atrelada ao surgimento e popularização da bebida pelo mundo. Até os gregos, pouco fãs da bebida, associavam a cerveja ao feminino enquanto o vinho era a bebida considerada masculina. 

Ao longo dos séculos essa história mudou e a cerveja foi se tornando cada vez mais um território dos homens. Mas com a popularização das cervejas artesanais nos últimos anos e os movimentos por maior representação feminina em todos os espaços da sociedade, as mulheres passaram a retomar sua relação com a cerveja. 

Além de consumir mais cerveja (e obrigar muitas marcas a rever seu posicionamento publicitário), as mulheres também aumentaram sua participação em diversas áreas do mercado cervejeiro: desde a produção até o serviço, passando pela gestão de negócios e o ensino da cerveja.  

A cientista e empreendedora cervejeira Amanda Reitenbach é um exemplo desse movimento. Pesquisadora de cerveja desde sua graduação, tornou-se referência em gestão e análise sensorial. Em 2010, fundou o Science of Beer, instituição pioneira na oferta de cursos sobre cerveja no Brasil. 

Nesta entrevista, Amanda fala sobre sua experiência como empreendedora, comenta o cenário atual do mercado cervejeiro sob a perspectiva da participação das mulheres, e destaca os desafios e as perspectivas das profissionais que atuam em um setor que ainda é predominantemente masculino. 

O Science of Beer é umas das principais empresas de cursos de cerveja do país, como é a participação das mulheres na instituição?

Amanda Reitenbach: Em termos de gestão, o Science of Beer é uma empresa feminina. Além da minha liderança, toda a equipe responsável pela administração e gestão da empresa é composta por mulheres. Acredito que nós somos uma das poucas -—- senão a única — empresa brasileira do setor totalmente feminina. Também temos uma participação massiva de mulheres na parte de consultoria, projetos e aulas, como embaixadoras e coordenadoras. E isso é, de certa forma, meu manifesto para dar mais oportunidade e voz às mulheres no mercado de cervejas. 

Esse é um lado que eu tento dar muito destaque, pois essa é a minha maior forma de me posicionar como uma empresa feminista, de me posicionar como feminista: dando oportunidade e voz a outras mulheres. Essa foi a minha bandeira desde que eu abri o Science e vai vai continuar sendo sempre. 

Os homens também fazem parte desse processo e nos ajudam a construir o que é o Science. São homens com bastante consciência e que também apoiam a causa das mulheres na cerveja.  Afinal, é importante entender que uma causa feminista não é feita só por mulheres, mas por homens também. E os homens que fazem parte dos projetos do Science sempre vestiram essa camisa de nos apoiar como mulheres e tentar construir um mercado mais igualitário.

Isso também se reflete na procura das mulheres por cursos de cerveja?

AR: Felizmente vemos cada vez mais mulheres procurando cursos, se identificando e fazendo da cerveja uma profissão. No caso do Science, percebo que muito disso vem da minha posição como mulher empreendedora, pesquisadora e cervejeira. Hoje eu recebo frequentemente mensagens de mulheres que se inspiram no meu trabalho.

Outras mulheres fortes cumpriram esse papel e abriram um caminho muito anterior ao meu e eu me inspirei nelas. Figuras como Kátia Jorge e Cilene Saorin, que têm décadas de experiência, foram essenciais para o amadurecimento do mercado e para inspirar outras mulheres. Uma mulher sempre se inspira em uma mulher e por isso a gente vê esse movimento crescendo mais forte. 

Quais os principais desafios das mulheres que atuam no mercado cervejeiro brasileiro?

AR: Ser empreendedora e ter uma empresa feminina no setor cervejeiro sempre foi um desafio, e ainda é, principalmente quando as conexões e o trato diário são com homens. Porque ainda existe muito machismo e percebo isso em alguns projetos que executo. 

Lógico que há também o outro lado. Muitos homens estão ajudando a construir um espaço mais inclusivo e a apoiar mulheres empreendedoras. Mas infelizmente, existe a parte de masculinidade tóxica em que um ou vários homens não toleram uma mulher empreendedora, não toleram que uma mulher lidere uma equipe ou ocupe uma posição de destaque em um projeto grande. 

Eu já escutei isso, já vivenciei esse tipo de situação e há alguns anos luto para me posicionar profissionalmente e como mulher dentro de alguns projetos, mas nem sempre essa é uma batalha vencida. 

Às vezes a masculinidade tóxica e o machismo acabam vencendo e isso é lamentável. E é por isso que a gente precisa de mais união, mais força das mulheres e maior consciência do mercado como um todo para entender que existem sim intervenções machistas que dificultam o trabalho das mulheres que muitas vezes se calam por medo do preconceito e das críticas que o mercado pode trazer.

De que maneira esses comportamentos machistas se manifestam?

AR: As mulheres são constantemente silenciadas de uma forma muito velada, não é uma coisa super escrachada e que todo mundo observa e vê. Mas já participei, por exemplo, de reuniões em que eu não podia falar, não podia expressar a minha opinião porque todos ali eram homens e estavam se posicionando de uma forma muito forte e não deixando que eu falasse.

Esse silenciamento não está apenas em uma fala direta, mas pode vir em atitudes e outras formas de manifestações. Nem sempre a pessoa precisa dizer que você não pode estar ali como mulher, que a sua opinião não é considerada. Abafar a sua opinião, não deixar você falar, não aceitar a sua ideia são formas muito claras de machismo. 

Por isso, ter cada vez mais mulheres no mercado e contar com movimentos feministas em geral também a favor da cerveja é de extrema importância para que a gente lute contra esse preconceito que é velado e que todas as mulheres que trabalham no setor passam ou já passaram. 

Precisamos falar sobre isso, precisamos trazer luz ao assunto para entender que não é mimimi, não é um a reclamação isolada. É uma situação que nós mulheres passamos e identificamos, e que a gente não quer que faça mais parte do trabalho de nenhuma mulher. 

Você participa/ já participou de iniciativas e projetos voltadas ao fortalecimento das mulheres no mundo cervejeiro?

AR: Sim, além do Science of Beer que eu considero a minha maior bandeira, eu também me envolvi em outros projetos. Aqui em Florianópolis eu comecei uma confraria com várias mulheres, a ConfraSanta, que hoje não existe mais. Depois tivemos uma outra confraria que chamava Flor de Lúpulo.

Eu também participei de um projeto com a Eisenbahn de uma cerveja colaborativa feita por mulheres. Foi a primeira cerveja colaborativa da marca e trouxe esse tom feminino e também a chamada dos homens para a causa. 

E sempre, em qualquer trabalho que eu faço, eu tento buscar a participação de mais mulheres. Então às vezes é uma ação silenciosa, que não está escrita ou definida, mas que só pelo fato de você colocar mais mulheres atuando nesses projetos, já faz dele um manifesto. 

E fora do país, qual é o cenário da participação feminina que você tem acompanhado ao participar de eventos?

AR: Com relação a outros países, o que eu observo na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, é que a participação feminina no mercado cervejeiro também está crescendo e que elas têm um apoio mais forte dos homens do que temos aqui. Então a questão da igualdade de gênero já é um pouco melhor entendida. 

Nos Estados Unidos, a Brewers Association, por exemplo, faz uma campanha para que todos os seus trabalhos e projetos não façam distinção de gênero, raça ou orientação sexual. É uma bandeira muito forte da Brewers Association, que é a maior entidade de cervejeiros e que inspira tantos trabalhos no mundo. 

Mas no Brasil, ainda precisamos de uma inclusão maior. E não só para as mulheres, mas para outras causas também: dos negros, das diversidades sexuais, de todas as outras minorias que precisam se sentir incluídas na fala da cerveja artesanal.  Por tantos preconceitos que a gente vê por aí, essa diversidade é uma questão que ainda não vemos sendo pautada nos ambientes cervejeiros. 

Quais são as suas expectativas para o futuro das mulheres que trabalham com cerveja no Brasil?

AR: Acredito que mais do que expectativas, o que eu tenho são desejos e anseios de que o mercado cervejeiro (e isso vale para o mundo também) seja um ambiente de maior respeito pelas pessoas. 

O meu desejo é de que a voz das mulheres cervejeiras não seja silenciada, que as mulheres tenham maior destaque em seus trabalhos, que possam assumir a liderança e ser escutadas e respeitadas. 

Precisamos entender que capacidade técnica é algo que é independente do gênero, da orientação sexual, crença religiosa, cor de pele e tudo mais. Qualquer pessoa pode (e deve) trabalhar com cerveja tendo a liberdade e as portas abertas para expressar a sua capacidade técnica onde quer que esteja. Esse é o meu forte desejo para o futuro do mercado cervejeiro. 

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