Criatividade sem dono

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— Não repara não, é que trabalho com criatividade, então não entendo muito esses números (nem gosto, isso é coisa para nerds).

— Pois é, a área técnica é muito limitada. Por isso escolhi trabalhar com criatividade.

— Sabe o que é? Não fico bitolado nesses detalhes técnicos porque sou muito criativo, viajo mesmo.

Vivo escutando essas frases de designers, publicitários, ilustradores, artistas plásticos e todos esses profissionais que se convencionou chamar “criativos”. É praticamente um consenso: eles são a parte criativa da sociedade. O resto das pessoas é bitolada, um pouco limitada, tem dificuldade para entender arroubos de inovação. Eu aceitava isso sem questionar muito. Mas, esses dias, ao ouvir pela enésima vez essa fórmula tão pouco criativa, comecei a questioná-la.

De um lado se colocam os nerds (engenheiros, técnicos, programadores, físicos, matemáticos). Do outro estão os “criativos” (designers, publicitários, escritores, artistas). Será que a criatividade é mesmo distribuída de maneira assim tão binária no mercado de trabalho?

Vejamos. A primeira coisa que me vem à mente é que os chips eletrônicos são feitos de silício. E silício, em última instância, é um tipo de areia. Físicos, químicos e engenheiros precisaram encontrar maneiras mirabolantes para adestrar essa areia e transformá-la em computadores, telefones celulares e televisores de alta resolução. Como convencer grãos de areia a fazerem o que você quer? Como sequer imaginar que grãos de areia sejam tão talentosos? Mais que ser criativo, esse povo precisa literalmente tirar leite de pedra…

Olha só o caso dos programadores. É esse povo bizarro que traduz linhas de código escritas em línguas esquisitíssimas no sistema operacional e nos softwares que os criativos usam para desenhar, alterar, distorcer, tratar e animar imagens que antes só viviam numa folha de papel. Existem infinitas maneiras de se escrever um programa – o programador tem que usar toda a sua capacidade criativa para encontrar a melhor solução usando o mínimo de recursos computacionais. É quase como o trabalho de um escritor; o programador precisa dizer para o computador o que ele tem fazer (sem deixar dúvidas) em um mínimo de palavras muito bem escolhidas.

Achar um erro num programa ou numa placa de circuito impresso é um trabalho de detetive que exige tanta criatividade quanto um investigador policial. É preciso colher pistas, testar possibilidades, pensar o que ninguém pensou, ser absurdamente original.

Física é outro lugar onde a criatividade é essencial para se evoluir. Para mim, a teoria da relatividade é a demonstração mais cabal do pensamento lateral aplicado no seu limite. Vale o mesmo para a matemática.

No caso das telecomunicações, entender como funciona a comunicação entre os satélites e as antenas de um mero telefone celular, é de dar dor de cabeça. É necessária muita, mas muita mesmo capacidade de abstração. Reunir um volume gigantesco de informações, tentar combinações improváveis, bolar meios de fazer as conexões, tentar caminhos novos, suplantar os infinitos problemas que aparecem no caminho e mesmo assim fazer funcionar sob pressão. Isso não é usar a criatividade? Então o que é?

Não quero, de maneira alguma, defender aqui que uma função seja mais ou menos importante que o outra, já que todas se complementam. Também não tem nada a ver com níveis de inteligência, já que o profissional tem que ser muito bom para fazer uma coisa realmente original, seja que coisa for, em qualquer área. O que gostaria de chamar atenção, é que às vezes a gente acaba considerando um trabalho como pouco criativo só porque a não conhece muitos detalhes dele. A criatividade se manifesta sob muitas formas diferentes. Em comum, todas recombinam informações de maneira original para resolver um problema.

Na minha opinião, a criatividade depende muito mais do profissional do que da profissão. A gente encontra campanhas publicitárias geniais e outras que poderiam ser tudo, menos criativas. Também vê técnicos encontrando soluções praticamente milagrosas e outros que parecem ser desprovidos de cérebro.

Criatividade não tem dono, nem currículo, nem diploma, nem profissão. Ainda bem.

Lígia Fascioni | www.ligifascioni.com.br

9 Responses

  1. transitoriamente
    Responder
    29 janeiro 2009 at 11:34 pm

    Cara Ligia,
    Primeiro quero lhe parabenizar pelo blog, sempre muito interessante.

    De fato há uma deformação estética em relação ao modo como enxergamos o ser criativo. Isso influencia também na forma como as pessoas valorizam os trabalhos de outros setores. Por exemplo, tem gente que gasta R$800,00 em um tênis, mas acha caro você cobrar o mesmo valor por uma sessão fotográfica que eternizará um momento.

    Para alguns caviar é um deleite, para outros um absurdo ou até mesmo algo que não existe. Quão criativo é um médico numa situação de emergência? Quão criativo é um designer que se afoga no mar das referências batidas? Quão criativo é um objeto sem função? E uma função sem objetivo?

    Quanto ao Einstein e sua teoria da relatividade eu particularmente não entendi ao que você se refere como pensamento lateral. Estes grãos de areia não se movem justamente pela idéia de que, por exemplo, uma formiga carregaria um prédio se fosse do nosso tamanho, e que a força dela é maior do que a nossa dada as proporções? E que isso seria uma “força-vital” inerente a tudo e a todos.

    Por outro ponto de vista esse “lateralismo” parece fazer realmente sentido, já que os mundos são iguais em suas diferentes proporções. Quem sabe o ser verdadeiramente criativo é aquele que vê o que está em tudo, o essencial.

    Além do que os olhos podem ver… Isso me parece futuro.

    Um abraço, Antonio Rossa

  2. transitoriamente
    Responder
    29 janeiro 2009 at 11:52 pm

    Fostes claríssima! Espero eu ter sido lateral, rsrsrs.
    Um abraço e até a próxima.
    Antonio

  3. Tereza
    Responder
    30 janeiro 2009 at 12:57 am

    Mais um texto delicioso!

    Eu me formarei em design de produtos dentro de um ano, e pretendo seguir carreira na fotografia, acreditando que essa formação vai me dar um respaldo excelente pro caminho que escolhi. Ainda assim, são duas áreas consideradas dos “criativos”. Eu canso de ouvir que sou criativa, sou fashion, tenho estilo, e tenho mesmo que trabalhar nessas áreas.

    Mas dou dois exemplos “laterais” de criatividade. Meu irmão, médico, residente de infectologia no hospital da universidade federal. Se vira pra resolver os problemas dos pacientes com recursos escassos de um posto de saúde na periferia da cidade, porque ele acredita que tanto esses pacientes [criminosos inclusos] quanto os que ele atende no hospital merecem a mesma qualidade de tratamento.

    Meu namorado, professor de educação física. E nerd. Do tipo Star Wars, quadrinhos [principalmente Batman], e com gosto profundo pelo estudo acadêmico. Ele é criativo na hora de montar os programas de treino evitando fadigas musculares desnecessárias, na hora de trocar um exercício porque o aparelho está ocupado, e até mesmo na forma de “seduzir” o aluno e mantê-lo motivado.

    E então, a criatividade é ou não é multidisciplinar?!

  4. 30 janeiro 2009 at 2:07 am

    Excelente texto, parabéns!

  5. 30 janeiro 2009 at 2:48 am

    Prezada Lígia;
    Gostei tanto do seu texto que tomei a liberdade de reproduzi-lo em meu blog (claro, devidamente citado).
    Também, vou utilizá-lo em minhas aulas. Espero que ele funcione como uma bomba. Estou farto de ver alunos e muitos colegas de profissão justificar suas bobagens como o termo “criatividade”!
    Parabéns pela sacada e se estiver certo, pelo desabafo.

  6. 30 janeiro 2009 at 10:54 am

    Sensacional!
    Como sempre, dando um banho de “meditação”!rsrs

    parabens
    abraços

    Daniel

  7. 30 janeiro 2009 at 12:47 pm

    Muito bom o texto, parabéns.

    Sou da criação mas tive uma passagem pela engenharia elétrica e os vários choque que tomei serviram para perceber que a maioria das pessoas associa criatividade com criação, quando na verdade deveriam associar a solução…. 😉

    Abs

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