Dois engenheiros, oito milhões

pastacaseira

Três coisas me aborrecem muito: Um, quando se faz apologia do sucesso de quem não estuda menosprezando ou descrevendo como tolo aquele que estudou; Dois, quando uma história sem pé nem cabeça é “vendida” como verdade absoluta só porque “deu na internet”; Três, quando engenheiros ou arquitetos são ridicularizados em público por alguém que nunca sentou num banco de faculdade de Engenharia ou de Arquitetura e, portanto, não sabe do que está falando

Essas palavras poderiam ter saído do meu teclado, pois concordo e assino embaixo de tudo o que está escrito. Mas quem as combinou foi o genial Ênio Padilha em um artigo esclarecedor sobre um vídeo que rola há anos pela Internet com a palestra do Sr. Mario Sérgio Cortella, onde ele conta como operários ridicularizaram engenheiros numa linha de produção de pasta de dente. A história é fake, mal contada e ridícula, mas muita gente leva isso a sério como se fosse um ensinamento.

Segue o artigo do Ênio.

Três coisas me aborrecem muito: Um, quando se faz apologia do sucesso de quem não estuda menosprezando ou descrevendo como tolo aquele que estudou; Dois, quando uma história sem pé nem cabeça é “vendida” como verdade absoluta só porque “deu na internet”; Três, quando engenheiros ou arquitetos são ridicularizados em público por alguém que nunca sentou num banco de faculdade de Engenharia ou de Arquitetura e, portanto, não sabe do que está falando.

Assim, este artigo tornou-se inevitável, por ter sido provocado por esses três componentes ao mesmo tempo…

É o seguinte: em alguns vídeos disponíveis na internet um certo palestrante conta uma historinha para ilustrar e confirmar a sua linha de argumentação.

O palestrante não é nenhum Zé Ninguém. É graduado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação. Professor-titular de uma importante Universidade Brasileira, membro do Conselho Técnico Científico de Educação Básica da CAPES/MEC. Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo e é autor de diversos livros.

Na história contada pelo palestrante, que, como ele faz questão de repetir, é “clássica e verdadeira” uma grande empresa multinacional (que fabricava, entre outras coisas, pasta de dentes) tinha, há 15 anos, um grande problema para ser resolvido: na esteira final de embalamento algumas caixinhas vinham vazias, sem o tubo de creme dental. Isso era um problema pois poderia causar dificuldades comerciais para a empresa.

O que fez a multinacional? Contratou dois engenheiros para resolver o problema. Os dois engenheiros trabalharam por três meses, consumindo oito milhões de reais e chegaram a uma solução “estupenda”: um programa de computador, acoplado à esteira de aço com uma balança ultra sensível. Quando passava uma caixinha vazia o sistema acusava a diferença de peso, parava a máquina, travava tudo, um braço hidráulico vinha e tirava a caixa vazia.

Depois de dois, três meses de funcionamento perfeito, foram olhar os relatórios e descobriram que havia dois meses que o sistema estava desligado. Chamaram supervisor, gerente e chefe e ninguém sabia de nada. Chamaram os operários e alguém falou: “a gente desligou isso, porque dava um trabalho danado. Travava o tempo todo”. Então, como é que está funcionando sem defeitos? “A gente resolveu do nosso jeito: fizemos uma vaquinha, juntamos oitenta reais e compramos um ventilador grande e colocamos na esteira. Quando passa uma caixinha vazia o vento carrega!”

Gargalhadas incontidas na platéia. Palestrante feliz! Conseguiu demonstrar o seu ponto de vista: a melhor solução está onde está o melhor estoque de conhecimento.
Bravo, Doutor!

E onde é que entra a Engenharia nesse seu exemplo? Ah, sim. O senhor está demonstranto que engenheiros são obtusos, idiotas, sem noção de custos e incapazes de encontrar uma solução minimamente razoável (Acho que é isso). Portanto, se estamos falando de “estoque de conhecimento” inútil procurar no departamento de Engenharia. (é isso?)

É claro que essa história tem toda cara de ter sido inventada para ilustrar palestras de autoajuda e motivação, tipo de evento em que o objetivo é muito mais divertir e distrair a platéia do que ensinar coisas realmente úteis para a vida. Mas me incomodou o fato de que esse vídeo está reproduzido diversas vezes na internet, sempre seguida de comentários contra a obtusidade dos engenheiros envolvidos.

Fiz uma pequena busca. Mandei um e-mail para o palestrante, outro para a única empresa multinacional que se encaixa na descrição feita pelo palestrante e também para a Associação de Engenheiros de Valinhos. Recebi algumas respostas e, voilá… descobri o óbvio: a história é fake. Foi inventada para ilustrar alguma conversa fiada e acabou, por falta de filtro científico, chegando à palestra de um acadêmico (que deveria, por dever de ofício, ter o cuidado com todo o conteúdo de suas apresentações).

Será que esse palestrante coloca nos seus livros qualquer bobagem que ouve numa mesa de bar ou numa festa em casa de amigos? Imagino que não. Então por que incluiu essa história na sua palestra? E por que deu a ela o crédito de “clássica e verdadeira”?

Resposta: porque ele sabe que, nesse tipo de platéia ninguém desconfia do que é dito. As pessoas estão ali para se divertir, dar boas risadas e se sentirem melhor com a própria mediocridade. Se eu não sou alguém capaz de construir soluções elaboradas, científicas e tecnologicamente corretas, tudo bem. Eu posso me sentir melhor ridicularizando pessoas que fazem isso. Nesse país de analfabetos sempre foi esporte nacional menosprezar e ridicularizar as pessoas que estudam e se preparam.

Nas novelas da tv os personagens principais nunca estudam. Alguém aí se lembra de algum personagem que tenha vencido na vida ou progredido, por ter estudado, durante uma novela? Nem em “Malhação” (cujo cenário é uma escola) os personagens estudam ou têm suas vidas transformadas em função da dedicação aos livros e cadernos.

Nas novelas é muito comum o progresso (muitas vezes vertiginoso) por outras razões como beleza, simpatia, jeitinhos ou contatos com as pessoas certas. Isso alimenta nas pessoas (nos telespectadores) a crença de que o sucesso está ao alcance de qualquer um: estar melhor preparado para as oportunidades não faz diferença. É tudo uma questão de “força de vontade”.

No futebol (nos esportes, em geral) essa lógica também é forte. Em outros países, um atleta que se preparou muito e por alguma razão perde a competição não é desprezado pela torcida. Ao contrário, recebe os aplausos e o reconhecimento pelo empenho e preparo. A torcida sabe que aquele atleta tem maior chance de construir uma carreira de bons resultados.

No Brasil não. O brasileiro supervaloriza as conquistas casuais, as vitórias inesperadas, o campeão que surpreendeu a todos, o atleta que vence uma grande competição quando ninguém esperava nada dele.

Torcemos sempre pelo time mais fraco e pelo competidor mais despreparado. São os atletas e equipes que, no imaginário coletivo, chegam às conquistas por acaso, sem querer, sem ter planejado isto.

Pais e mães se orgulham de contar para os amigos que “meu filho passou no vestibular. E olha que ele nunca estudava para a prova“.

Uma pessoa conquista um bom emprego e conta pra todo mundo, cheio de orgulho: “nem me preparei para a entrevista!

O brasileiro vive procurando provas de que é possível vencer na vida sem preparo, sem investimentos e, principalmente, sem passar pelo caminho completo.

Nós, brasileiros, não acreditamos no treinamento. Não acreditamos no estudo. Não acreditamos que o desempenho é o resultado de uma estrutura (física, intelectual ou psicológica) planejada.

Torcemos contra o atleta favorito (aquele que treinou mais e por mais tempo). Torcemos contra os mais fortes (que são mais preparados e estruturados). Torcemos sempre para que haja uma queima inesperada de etapas com a surpreendente vitória do novato, daquele que não estudou ou que não se preparou direito.

E a vida segue.

ÊNIO PADILHA | www.eniopadilha.com.br

7 Responses

  1. Clô♥
    Responder
    14 novembro 2009 at 10:00 pm

    Ai votamos…e dá no que dá…e a fila anda infelizmente…

  2. 14 novembro 2009 at 10:11 pm

    É importante a busca da veracidade das informações passadas e repeito com todas as atividades profissionais. Infelizmente o Brasil está cheio de “soluções prontas”.
    Um abç.

  3. Erly Miranda
    Responder
    16 novembro 2009 at 10:11 am

    Esse tipo de cultura infelizmente desvaloriza os profissionais de várias áreas, quando se perde alguém competente assim, para uma outra empresa, um outro país, vem seguido de um arrependimento. Exemplo claro é a atleta Maurren Maggi, que esta desempregada, tanto treino, medalha olímpica e nem um patrocinador, será que pensam em somente em fazer isso às vésperas de uma olimpíada. Ainda tem muito brasileiro conformado, não corre atrás, pensa que o conhecimento se adquiri num instante.

    Mas é melhor assim, né? Assim podem governar melhor. Pra quê investir em educação, ou em incentivos a educação? As pessoas ainda pensam em trapacear, lograr, enganar.

    Fiquei triste.

  4. Andréa
    Responder
    16 novembro 2009 at 8:41 pm

    Também assino embaixo do Sr. Ênio, e ainda acrescento: “pior é quando o cara se esforça, estuda, consegue vencer e o outro vem e diz: – esse cara nasceu pra lua, heim!!!! Que sorte!!!!

  5. Sidney Martucci
    Responder
    15 novembro 2015 at 1:38 pm

    Teoria da Relatividade de Albert Einstein : { Tudo depende do ponto de vista do observador } ; então a estoria pode ser fake, mas não anula o fato de que possa existir pessoas formadas que são ou agem com incompetência, ou mesmo instituições que formam pessoas com qualidade questionável , senão vejamos : jamais haveria erros médicos, pontes e viadutos nunca cairiam, usinas nucleares seriam a prova de acidentes e por ai vai……., a excelência e qualidade é individual e nunca coletiva, um diploma lhe outorga um título, dai até a execução profissional, cabe um abismo, há os notáveis e há os medíocres, senão teríamos milhares de Albert Eisnteins, nascendo todos os dias……, não basta a escolaridade é preciso ter o gosto e caráter pela profissão escolhida e não se formar pensando apenas ou no status ou no engajamento financeiro !

  6. Luiz
    Responder
    7 janeiro 2016 at 3:47 pm

    Concordo com Sidney Martucci e acrescento, não desmerecendo os engenheiros quando o Dr. Mario Sergio Cortella se refere “NO ESTOQUE DE CONHECIMENTO”, muitos profissionais graduados subestimam outros profissionais que não possuem tanto conhecimento teórico, porem, esses possuem a vivencia e a pratica, os 2 engenheiros poderiam ter consultados os operários isso não os diminuiriam, pois, o mais importante é resolver o problema da melhor maneira possível.

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