Dois livros

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Apesar a correria, consegui ler dois livros essa semana (ok, estou no final do segundo) e, por sorte, são ótimos.

O primeiro é “Leite derramado“, do genial Chico Buarque. O Chico é uma dessas pessoas iluminadas que conseguem fazer o que bem entendem com as palavras, exceto quando está falando e consegue contradizer a sua genialidade defendendo Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula (mas tudo bem, ele pode ser incoerente e paradoxal. Ele pode tudo, ele é o Chico Buarque).

O livro conta a história de um velho (para você ter uma ideia da velhice do personagem, o nome dele é Eulálio) que está morrendo num hospital e conta a sua vida para as enfermeiras. O pobre (de espírito) nasceu em uma época em que o valor da pessoa estava registrado no seu sobrenome de família, além da conta bancária, sendo que os dois critérios eram mais ou menos equivalentes.

Eulálio não consegue assimilar o fato de que o dinheiro tomou todo o poder nessa medida, anulando completamente brasões e congêneres. Ainda tenta ver o mundo da ótica dos senhores do poder, mesmo que paupérrimo e ignorado. De certa forma, do seu jeito torto, ele ainda vê o mundo como um menino obediente, da maneira como lhe educaram e incutiram os duvidosos valores. O pior é que conheci uma pessoa assim na vida real; ela não conseguia se adaptar de jeito nenhum, era patético vê-la discorrer sobre a nobreza de sua árvore genealógica para qualquer garçom desavisado que lhe desse ouvidos.

O que nos remete ao excelente “Tudo o que você não soube“, da Fernanda Young, na minha opinião a melhor escritora brasileira da sua geração. O que me fascina na leitura, mais que a história que está sendo contada, é como ela está sendo contada. Me encantam as combinações de palavras e as construções das frases, coisa que a Fernanda domina como poucas.

Neste romance, uma filha escreve um livro para o pai que está morrendo (olha que coincidência) para que ele conheça esse ser que, apesar de ter gerado, nunca conseguiu se aproximar realmente. Vale cada letra impressa.

Olha um trecho onde ela fala sobre o Brasil, que, para mim, consegue interligar os dois livros:

Aqui, aprende-se cedo que ser é ter, sem se aprender como fazer para se ter; então, não importa se for trabalhando ou roubando, dá tudo no mesmo. Ir na direção de possuir é o que fará você ser aceito, sendo meia dúzia de crimes no decorrer do caminho algo perfeitamente aceitável, tanto para o presidente da República quanto para minha namorada de cárcere“.

Triste, mas certeiro como uma martelada.

3 Responses

  1. 22 janeiro 2010 at 11:23 am

    Lígia, querida.
    Adorei a sua resenha dupla. ainda não li o livro da Fernanda Yong, mas li “Leite Derramado” na semana do seu lançamento. e escrevi um e-mail para três amigos. Olha só:

    Queridos amigos

    UMA DICA DE LEITURA

    LEITE DERRAMADO (Chico Buarque)
    Este livro foi lançado há duas ou três semanas, mas, com certeza entrará para a lista dos mais vendidos (se é que já não entrou)

    Quem leu e gostou de Estorvo ou Budapeste nem precisa pensar duas vezes. Pode comprar o livro que vai ter diversão garantida.

    O livro é o relato meio senil de um homem com mais de cem anos, na cama de um hospital ordinário. Ele fala, ora para a enfermeira, ora para a filha, ora consigo mesmo (mas ninguém parece estar prestando atenção), contando fatos da sua vida e de sete gerações da sua família, que era a nata da elite social, financeira e política do país e que, por diversas pequenas tragédias narradas no livro foi à miséria total.

    A história é interessante, mas o jeito de contar a história é que é fascinante.
    Chico Buarque acertou a mão (a música perdeu um grande compositor, mas a literatura teve um lucro enorme!). Ele escreve propositalmente de forma confusa e sem ordem cronológica, obrigando o leitor a prestar atenção, como prestaria atenção (se quisesse entender) a um velho de cem anos, que oras está lúcido e noutras “variando das idéias”.
    Assim o texto é um quebra-cabeças e o próprio leitor vai juntando as peças e montando, num exercício muito estimulante.
    Afinal, como ele mesmo (o velho) diz: “a memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor da minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética ou por assunto…”

    As 195 páginas do livro passam como se a gente estivesse apenas ouvindo música. A última página deixa a gente com vontade de recomeçar da primeira.
    Vale a pena. Recomendo.

    Abraços. Ênio Padilha

    Lígia Fascioni: Que bom que você também gostou, Ênio. Parece que temos gostos parecidos em literatura também. Eu tinha lido a resenha da Veja e não era muito elogiosa (fato raro, pois geralmente concordo com o resenhista).

  2. 22 janeiro 2010 at 11:26 am

    PS. Quanto a Fernanda Young, depois do que você escreveu, ela ganhou mais um leitor, com certeza

  3. 25 janeiro 2010 at 3:31 pm

    Lígia, faz um tempo acompanho seu blog.
    Adoro literatura e sempre leio os livros do Chico Buarque porém nunca li nenhum livro da Fernada Young, vou aproveitar sua dica!

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