Eco pecados

Ilustração: Banski

O pecado é inerente ao ser humano e, desde que o conceito existe, temos convivido com a culpa como se fosse uma sombra; dependendo do sol, ela some, mas sempre volta. O povo apronta bastante, mas, quando sente que pegou pesado, corre atrás de salvação para sua alma atormentada na esperança de que alguém passe a mão na sua cabeça e diga que está tudo bem; nem foi tão mal assim, vai.

Empreendedora como sempre foi, na Idade Média a Igreja sacou que aí havia uma grande oportunidade de negócio e começou a vender pequenos pedaços de papel com o perdão escrito por sacerdotes autorizados. Em parte, o sucesso da prensa de Gutenberg se deu por essa “malinagem”, uma vez que quase ninguém sabia ler na época, mas todo mundo tinha pecados guardados nas gavetas e nos armários. O resultado é que descobriu-se que imprimir indulgências era o mesmo que imprimir dinheiro e o projeto foi um tremendo sucesso. Dizem alguns historiadores que essa foi a gota de tinta que faltava para que Lutero se revoltasse e consolidasse a Reforma Protestante. A coisa foi tão escandalosa que, depois de muita indulgência vendida, a Igreja achou por bem colocar fim nesse comércio de perdões, pelo menos oficialmente (como não freqüento nenhuma igreja, não sei bem como funciona hoje, então vamos deixar assim).

De qualquer maneira, os tempos mudaram, mas os seres humanos e, principalmente, seus pecados, continuam bombando. A diferença é que, como as pessoas estão menos pudicas e as leis dão conta dos crimes mais sérios, o grande pecado de nossa época é atentar contra a sustentabilidade do planeta. Simples como a tabuada de dois, todo mundo tem pelo menos algum grau de consciência de que, do jeito que a coisa anda, a gente não vai muito longe. O planeta está se desintegrando a olhos vistos e tudo por culpa da absoluta falta de educação de uma geração mimada que cresceu (e se multiplicou) achando que os recursos eram infinitos e que algum funcionário solícito iria aparecer do além para limpar a sujeira e deixar tudo em ordem de novo.

Então, crianças, quando a gente sabe que está fazendo alguma coisa errada, mas não quer mudar porque acha bom assim mesmo, faz o quê? Ressuscita da Idade Média a tal da indulgência, agora na versão empresarial na forma de créditos de carbono e na versão civil, na forma de camisetas engajadas, adesivos irados e biocombustível.

É um tal de consumir latas e latas de refrigerante, garrafas e copinhos de PET na maior tranqüilidade se achando o mais ecológico dos camaradas, que não é brincadeira. E a paz de espírito tem sua razão no rótulo mágico que todos esses lixinhos carregam: são todos recicláveis.

A questão é: não é por ser reciclável que uma coisa necessariamente VAI ser reciclada. Os lixões a céu aberto e os bueiros entupidos estão todos aí para corroborar o argumento. Na última grande enchente que houve em São Paulo, lembro-me de ter lido num blog que as pessoas estavam todas reféns da água e impedidas de se locomover; só quem tinha liberdade para ir onde quisesse eram as garrafinhas PET e as sacolinhas plásticas de supermercado, que desfilavam, orgulhosas, a sua reciclabilidade.

Visto que isso era bom e fashion, mas não o suficiente para acalmar os espíritos mais atormentados e com os sinais cada vez mais óbvios de que não está funcionando, a moda agora é neutralizar o carbono. Essa semana recebi um anúncio de uma empresa que promete plantar uma árvore a cada 1.033 km que eu rodar com minha moto. É, pessoas, as indulgências estão cada vez mais sofisticadas e sabe-se lá que conta mirabolante foi feita para chegar a esse número, mas parece sério, o que significa que posso poluir à vontade e com a consciência tranqüila que meu lugar no céu está garantido.

Vem cá, sou só eu ou isso está parecendo muito, mas muito infantil?

Não adianta sujar, poluir, destruir, consumir desenfreadamente e depois plantar meia dúzia de mudinhas que não vou cuidar só para aplacar minha consciência. O planeta não está nem aí para os adesivos que colo no meu carro, não sabe ler camisetas descoladas em línguas e tipografias diversas e nem faz conta de 3 ou 4 canteirinhos malcuidados. A pobre bola está seriamente doente; só o que a gente faz é bater nela, beliscá-la, cortá-la e envenená-la o tempo todo; de vez em quando, bate a culpa e a gente ensaia um beijinho discreto como se isso fosse ajudá-la a sair da cama dançando moonwalk na maior empolgação. Como é que esse povo ainda não se deu conta de que simplesmente não vai rolar?

Ou a gente vai para a UTI agora, antes que o quadro, já bem preocupante, piore; muda hábitos, pára de cortar, beliscar, bater e envenenar, imediatamente, ou senão, meus amigos, só vai ter um jeito.

Rezar.

Ligia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

10 Responses

  1. Clô♥
    Responder
    17 julho 2010 at 2:14 pm

    ♥Maravilha♥

  2. 17 julho 2010 at 3:58 pm

    Concordo com a Clô : MARAVILHA.
    Sem necessidade de qualquer comentário.
    Clap, clap, clap!

  3. Elisa
    Responder
    17 julho 2010 at 4:41 pm

    isso me fez lembrar de ti, ligia. http://s3.amazonaws.com/data.tumblr.com/tumblr_l5iiauPThW1qcy6yqo1_1280.jpg?AWSAccessKeyId=0RYTHV9YYQ4W5Q3HQMG2&Expires=1279482023&Signature=AnARim3qOTK5Esr7pw%2BeUByY5Yo%3D

    fazia tempo que eu não via um texto que tratasse desse assunto de forma interessante.

  4. Fatima
    Responder
    18 julho 2010 at 7:44 am

    Artigo excelente. Parabéns Lígia. Abraço daqui da Laguna. Fatima

  5. 21 julho 2010 at 12:07 am

    Muuuuito bom, Ligia! Duro, mas verdadeiro.
    Bjs!

  6. Andre Orthey
    Responder
    21 julho 2010 at 8:58 am

    Infelizmente tudo se tornou descartável. Objetos, pessoas, sentimentos. A falta de sensibilidade, a falta de caridade, a falta de gentileza e educação se tornam nosso maior mal. Somos cada vez mais antagônicos em nossas atitudes, e como a Lígia bem falou, estamos trocando nossos pecados por novas indulgências.

    Ser humano. O vírus mais estranho que o planeta já teve!

  7. Marcio R.
    Responder
    26 janeiro 2011 at 2:02 pm

    Exelente artigo!

  8. vera scheidemann
    Responder
    26 janeiro 2011 at 2:10 pm

    Olá, Lígia ! Somente hoje vi o seu novo blog. Está maneiríssimo !
    Parabéns ! E os Pets on Furniture são demais. É lógico que as
    suas crianças são as mais lindas.
    Beijos.
    Vera

  9. 13 março 2012 at 1:06 am

    Perfeita analogia com o passado, é uma infantilidade brutal tudo isso, a verdadeira solucao está no planejamento de toda a vida dos produtos, que nao podem acabar debaixo da terra, a terra nao pode funcionar de cemitério para todas as coisas. A terra fornece seus recursos para a producao, mas sao limitados, a producao deve ser planejada de maneira a dar reutilidade pós-consumo; é a logística reversa complementando a direta afim de possibilitar o verdadeiro equilibrio sistêmico, o qual a natureza reconhece e abarca naturalmente.

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