O barco e a aurora

Pois é, estou pronta para começar minha redação anual “Minhas férias” mas é tanta coisa que vou ter que dividir em vários posts. Impressionante o que dá para viver de experiências únicas em apenas 7 dias, mas duas coisas marcaram a minha história a partir dessa viagem: a visão, mesmo que rápida, da aurora boreal, e a visita ao Vigeland Park em Oslo.

Mas primeiro vamos começar com a viagem no tal barco postal. A responsável pela operação é a empresa estatal norueguesa Hurtigruten (que eu vivo chamando de Hortifruti…rs) cuja missão é transportar cargas, correio e passageiros desde 1893; hoje a frota tem 12 navios e atende todo o país. De fato, uma parte dos passageiros estava passando férias no roteiro de uma semana como nós (há roteiros de até 14 dias, incluindo a ida e a volta do trecho), mas uma parcela não desprezível era de moradores indo e vindo das cidades costeiras. Ou seja, o barco funciona como um ônibus ou trem qualquer, onde o povo embarca e desembarca conforme a necessidade.

São 34 portos em todo o trecho (o barco para em 17 na ida e nos outros 17 na volta) e viaja o tempo todo, exceto por intervalos de algumas horas em cidades maiores para embarcar/desembarcar carga e passageiros.

O BARCO

Mas não pense que pelo fato do barco ser um cargueiro o negócio é fuleiro. Nosso navio, com capacidade para cerca de 600 passageiros (estava com metade da lotação) era ricamente adornado com aquela profusão de coisas douradas de gosto duvidoso nas áreas “sociais” que os barcos de cruzeiro costumam ter (céus, onde os decoradores de barco aprendem a ser tão bregas, minha gente?).

De qualquer forma, não dá para reclamar. As cabines eram pequenas mas confortáveis, com piso aquecido e todas tinham vista para o mar; nosso barco, o Nordnorge, era grande e lindão.

OS PASSEIOS

Para quem não gosta de ler, essa não é a viagem mais recomendada. Só para dar uma ideia, liquidei as 1.318 páginas em inglês do 1Q84 (Murakami) que vou resenhar aqui depois (bem, uma japa passou o tempo fazendo origamis complicadíssimos e presenteou todo mundo que parava para admirar as obras, uma fofa talentosa). Tudo isso com uma paisagem de fundo magnífica e no conforto de um barco quentinho. Nas paradas mais longas, a gente saiu para conhecer as cidadezinhas lindas e nevadas. Também se dorme um montão; bom para recarregar as baterias, já que não havia Wi-Fi e a conexão dos computadores a bordo era pior que sofrível.

Depois de cruzar o círculo polar ártico ganhamos um certificado e teve até uma cerimônia de batismo com um sujeito fantasiado de viking. Eu escapei rapidinho pois, além do mico, o ritual consistia em derramar uma concha cheia de água do mar ártico atrás do pescoço da vítima (depois que ela tirasse o gorro e o cachecol). Tô fora!

Depois desse ponto não dá para enxergar mais o sol, que fica abaixo do horizonte e se movimenta apenas lateralmente. Tem uma certa claridade, mas é bem difícil de fotografar. Mesmo assim, valeram todas as pernadas (as fotos estão aqui, no Flickr).

Tinha também um tiozinho responsável por organizar as excursões; ele reunia os interessados para passar um filminho ou uma palestra rápida contando a história da próxima cidade onde a gente ia parar, quando era o caso.

A gente tinha se inscrito para um passeio de trenó com Huskis e eu estava sonhando com os fofos, mas bem na véspera a brincadeira teve que ser cancelada porque ficou um dia sem nevar e se formou uma camada de gelo dura no chão muito escorregadia. Isso é muito perigoso para os cachorros, que podem se machucar (eles precisam de neve fresca para correr com segurança). Fiquei feliz que eles sejam tão cuidadosos, mas também triste porque não pude afofar nenhum.

Existiam outros passeios com renas e até snowmobile, mas era caros demais para o nosso bolso (cerca de 300 Euros por pessoa por um passeio de 6 horas; vai ter que ficar para uma próxima oportunidade).

A COMIDA

Ahahaha… sempre falei que quem passeia de navio só consegue falar de comida, mas aqui tive que morder a língua. No navio havia um restaurante e uma lanchonete; a maior parte das refeições era em regime de buffet (detesto!), mas a compensação é que teve dois jantares onde imperaram os crustáceos (adoro!). Foi um festival de caranguejos, camarões de todos os tipos de tamanhos, siris, ostras, mariscos, lagostas e outros moluscos menos conhecidos. Um verdadeiro céu!

Teve um dia que eles levaram um pescador de verdade para o deck do navio e ele deixou a gente pegar um KingCrab (acho que a tradução é algo como caranguejo-rei) e a sua fêmea nas mãos (é claro que aproveitei; foram os únicos bichos com os quais tive contato a viagem toda!). A fêmea tinha uma bolsinha externa que carregava as ovas, bem fácil de abrir; ele convidou as pessoas a experimentarem a iguaria ali mesmo, mas achei um desrespeito colocar o dedão dentro da bolsa da sra. Carangueja com ela ainda viva. Mau-gosto, viu?

Ah, e eles comem salmão e trutas em todas as refeições, incluindo o café da manhã, preparados de todas as maneiras possíveis (nossas reservas de ômega 3 estão garantidas pelo resto do ano). E quer saber mais? Caviar para eles é como manteiga; eram montanhas do tipo negro, laranja e branco em todos os buffets para o comensal se servir à vontade (faz sentido, eles têm mais peixes do que vacas por lá). No café da manhã, tinha bisnaguinha de caviar para passar no pão. Loouuuuxo, minha gente!

Além disso tinha muita batata, salsicha, pimentão e pepino. O pão do navio não tinha nada de sensacional, mas paramos em uma padaria em Bergen que é inspiração para sonhos panificadores até hoje.

A LÍNGUA

O barco tinha 3 línguas oficiais: o norueguês (cujo som me pareceu japonês com sotaque italiano), o inglês e o alemão (isso porque quase metade dos turistas era alemão, como sempre; eita povo que viaja!). Todas as comunicações, palestras e menus eram nesses três idiomas, que acabava atendendo todo mundo: japoneses, coreanos, suíços, americanos, ingleses, franceses, enfim, uma babel. Encontramos uma simpática família de brasileiros (um casal e dois filhos adultos) cujos membros moravam espalhados pelo mundo e se econtravam uma vez por ano para passar as férias juntos. Muito lindo isso, viu?

A HISTÓRIA

Olha, o povo norueguês não é fraco não. Descendentes de vikings, eles viviam inicialmente de pesca (comiam morsas, peixes diversos e ursos). Depois começaram a criar renas para comer, mas a vida continuou dura naquele fim de mundo. Os navegadores do lugar são famosos pelos feitos inéditos: Roald Amundsen, o explorador mais famoso, foi o primeiro a chegar no polo sul (ele estava com a expedição pronta para ir ao polo norte, ali pertinho, quando recebeu a notícia de que outro sujeito chegou primeiro. Não se fez de rogado; deu meia volta e foi para o outro polo). O cara ainda voou de dirigível por cima do polo norte e descobriu várias terras naquelas região.

Visitamos um museu em Trøndheim muito interessante (o Museu Polar), mas em Oslo também há vários museus, inclusive com os navios totalmente restaurados contando mais histórias.

O TEMPO

Apesar de ter nevado bastante, o frio estava bem administrável; eu nunca tinha visto neve no mar, ainda mais caindo deitada por causa do vento forte; coisa mais cinematográfica! Indo bem agasalhado, não dá para reclamar. Chegamos em Bergen, no início do trecho, com chuva, mas depois a coisa melhorou e tivemos até dias de céu limpinho. Nos poucos trechos de mar aberto (indicados na programação escrita distribuída diariamente), o mar mexia mais e cheguei a enjoar em duas ocasiões, mas nada sério.

OS FIORDES

A gente passava por casas perdidas no meio do nada e vilarejos pequenos e ficava pensando como é viver isolado nesse fim de mundo. Hoje ainda tem barcos e a internet; mas como era antigamente? Todo esse frio e essa escuridão por quase metade do ano, sem ver vivalma. Muidifícil…

É também impressionante observar as incontáveis ilhas, farois, montanhas nevadas e o relevo bem variado. Em um trecho, na região das Ilhas Lofoten, o canal é tão apertado que quase tira a tinta do barco. O capitão tem que ser fera, principalmente se considerar que ele tem que passar pelo paredão de neve no escuro. Respect.

OS PREÇOS

As refeições estavam incluídas no pacote, mas as bebidas alcoólicas, como vinho ou cerveja, eram à parte, assim como tudo na lanchonete. E tudo caríssimo, pelo menos o dobro do que em Berlin. Mas não porque eles estivessem explorando a gente; era praticamente o mesmo preço das cidades. Para se ter uma ideia, a bandeirada de um táxi começa com € 15 (cerca de R$ 45); uma passagem comum de ônibus/metrô, válida por uma hora em Oslo custa € 7 (cerca de R$ 20); um Big Mac sai pela bagatela de € 13 (quase R$ 40). Todas as excursões eram à parte (e nessa base); assim, algumas coisas tiveram que ficar só na vontade mesmo.

O tiozinho animador de auditório nos explicou que isso acontece porque a Noruega é um dos países mais ricos do mundo devido à exploração de petróleo nos mares gelados. Rola muito dinheiro no país e, apesar dos impostos serem altos, o custo de vida acaba acompanhando. Eles reconhecem que atrapalha bastante o turismo, porque os mortais comuns, mesmo europeus, ficam impossibilitados de ficar muito tempo no país gastando dinheiro com essa desenvoltura.

A TAL DA AURORA BOREAL

Finalmente vamos falar dessa senhora. Olha, vou dizer uma coisa: esperar para ver a D. Aurora não é para fracos. Há que se ficar no deck do navio, exposto ao tempo no inverno ártico e olhando para o céu sem piscar. Eles chamam a operação muito apropriadamente de “Hunting Northern Lights” e é isso mesmo, uma “caçada às luzes do norte”. Tinha gente que ficava sentadinha, com o tripé montado e enrolada no cobertor curtindo um sereno polar. Eles só não distribuem carteirinhas da Funai porque os vikings não são índios…rsrsrs

Ainda bem que, para distrair a torcida, de vez em quando eram jogadas algumas estrelas cadentes (vi uma penca!).

Bom, a aurora boreal é um fenômeno resultante da radiação das explosões solares que atinge o campo magnético da terra; então, para que seja visível, é preciso que haja explosões solares, que o campo magnético esteja devidamente alinhado com as radiações e que o céu esteja limpo. Ah, e não pode ter lua cheia, pois D. Aurora gosta de estrelar sozinha, sem ninguém para competir com seu brilho. O espetáculo pode durar poucos segundos ou vários minutos; pode ser pequenininho ou ocupar o céu inteiro.

Nós pudemos ver uma amostra que durou menos de um minuto. Começa com uma luz esbranquiçada que, aos poucos vai ficando verde. No nosso caso, a forma era triangular, e o mais impressionante é que ela dança lentamente, sensualmente, como que provocando a plateia. A luz se move em câmera lenta e vai ficando cada vez mais verde e intensa, sempre cuidando para não perder o gingado. Até que chega um momento que ela parece se cansar do espetáculo e desaparece, apagando-se devagarinho. É tão impressionante que mal dá para descrever… gente, imagina só os pescadores antigos vendo isso e sem conhecer a explicação! As luzes parecem fantasmas se movendo, como que sereias tentando seduzir quem está no mar. Fico pensando no susto que eles levavam, no monte de crenças e superstições que foram criadas a partir daí. Coisa de louco.

A gente só viu uma vez, mas a sensação é muito parecida com a de observar um glaciar se desmontando. Você fica prestando atenção em cada movimento e barulhinho, na expectativa de ver cair um pedaço. Aí espera mais um pouco. Quando você se cansa e olha para o lado, a coisa toda despenca e você não fotografou. Aí a vontade é de esperar mais um pouco para ver novamente. Nada menos que hipnótico; acho que dá para ficar horas olhando fixamente e esperando algo acontecer.

Com a aurora é a mesma coisa (só que mais frio). É um troço tão, mas tão viciante, que a gente vai voltar de qualquer jeito, pois queremos ver mais. Essa empresa faz passeios na Groelância e em ilhas ainda mais ao norte, em lugares bem próximos da calota polar, onde dá para ver até ursos e morsas.

Olha, não sei quando nem como, mas que vai ter mais, é de certeza.

Seguem algumas fotos de amostra, mas recomendo fortemente que visitem o álbum no Flickr (é só clicar aqui).

Bergen, o começo da viagem
Pena que chovia demais, pois a cidade é uma graça
Ålesund também não fica atrás no quesito beleza
Trondheim às 10 da matina
No auge da claridade, meio-dia.
Um farol no norte do mundo
Passando pelos fiordes
Bodø ao meio-dia
Marina de Bodø
Finnsnes em pleno meio-dia!
Tromsø às duas da tarde
Honningsvåg ao meio-dia
Honningsvåg ao meio-dia
Aeroporto de Kirkenes ao meio-dia

7 Responses

  1. 8 janeiro 2013 at 6:28 pm

    Gostei muito da descrição e todas as fotografias. Estão fantásticas!

  2. Clotilde♥Fascioni
    Responder
    8 janeiro 2013 at 7:58 pm

    Maravilha a “redação” e as fotos.

  3. Andrea Proenca
    Responder
    9 janeiro 2013 at 12:44 pm

    Espetacular!

  4. 9 janeiro 2013 at 6:30 pm

    Lígia, querida.
    Este comentário é para este post e para os dois seguintes (Oslo e Gustav Vigeland). Só agora arrumei tempo para vê-los, pois minhas férias acabaram no domingo e agora o bicho tá pegando geral.

    Acompanho o comentário da Andrea Proença: espetacular! Me sinto privilegiado de poder contar com você para descrever essas viagens com essa riqueza de detalhes e sem afetação de turista novo-rico. Cada “Redação de Férias” que você escreve é uma aula pra gente. E assim a gente vai conhecendo o mundo. Show!

    PS. Fiquei encantado com as esculturas do Seu Gustavo. Aqui em Florianópolis a gente diria pra ele “ezumonxtro! dazumbanho, ô istepô!”

    • ligiafascioni
      Responder
      9 janeiro 2013 at 6:41 pm

      Aahahahah… obrigada, mas não posso ter a afetação de turista novo-rico simplesmente porque o orçamento aqui é apertado mesmo….sou da turma dos turistas velhos-pobres…ahahahahahahah

      Também virei fã do Seu Gustavo. Eu diria “arrombássi!!!”

      Beijos e um 2013 cheio de trabalho para você (mas com folga em outubro!!)

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