O homicida que mora dentro de você

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Marcos tem 30 anos. Num dia de supremo azar, é assaltado e leva um tiro, disparado por um bandido nervoso.

Considerando que Marcos poderia viver até os 71 anos (expectativa de vida de um homem no Brasil), o ladrão roubou-lhe seus bens materiais e mais 41 anos de vida. Ninguém sabe como Marcos iria gastar esses anos todos, mas agora não há mais como saber. Eles lhe foram roubados. Marcos foi morto.

Pense; o tempo é a coisa mais preciosa que uma pessoa tem. Quando alguém lhe dedica seu tempo, valorize. A pessoa pode dar a você um relógio, um bombom, um computador e até um avião; tudo isso pode ser comprado com dinheiro, tudo isso pode ser resgatado, tudo isso pode ser medido em moeda. Menos o tempo.

Quando uma pessoa destina seu tempo a alguém, nunca mais irá recuperá-lo. É o maior presente de todos, aquele que não tem preço, o que não volta mais.

Eis que Ana marca um café com Mônica e se atrasa 25 minutos. Mônica não pode fazer nada enquanto espera. Ana ganhou da amiga seu bem mais precioso e fez o quê? Jogou-o fora. Como se não valesse nada.

Em última análise, Ana roubou 25 minutos da vida de Mônica. Como o tempo é um recurso finito e limitado, Mônica terá que tirá-lo de outro lugar; talvez da convivência com o filho, talvez dos momentos de lazer, talvez das preciosas e necessárias horas de sono.

Quando a gente se atrasa  20 minutos para uma reunião, está matando 20 minutos da vida de cada um dos participantes. Nossa vida é nossa; podemos matar todo o tempo que quisermos, é nosso direito. Mas fazer isso com o tempo do outro? É assassinato.

Matar 20 minutos da vida de alguém ou 30 anos é só uma questão de escala. Estamos privando o outro de viver, de escolher o que quer fazer com seu tempo. Do ponto de vista ético, é crime.

Infelizmente, é um crime socialmente tolerado e não consigo entender por quê. Não raro perpetrado por defensores da vida e da diversidade, há assassinos em massa atuando em todas as esferas. E a polícia não faz nada, o governo não faz nada, as pessoas não denunciam esses homicídios diários. Talvez porque cada um tenha lá sua parte de culpa. Serial-killers infestam nossa sociedade. E ninguém se dá conta. Há pessoas perdendo anos de vida em reuniões que nunca começam no horário, em encontros que nunca são pontuais, em promessas que jamais são cumpridas.

Não raro, os crimes ocorrem em cascata: um atraso numa reunião provoca outro, que impacta o dia de uma pessoa ocupada, que produz efeito em outra e mais outra. Os efeitos finais são imprevisíveis e levam a vida de um monte de gente junto, pessoas que não tinham nada a ver com a história e perdem horas, quiçá dias de vida sem saber a razão. Nenhum vírus consegue ser tão letal como esse deplorável atrasildus cronicus.

Claro, há situações em que a gente mata alguém porque o ato está fora de nosso controle; imprevistos acontecem. Mas eu falei imprevistos. A maioria dos atrasos é causado por eventos perfeitamente previsíveis, portanto, evitáveis. É tudo uma questão de planejamento, gestão de riscos e, principalmente, consideração pelos outros.

Há quem, incomodado com a situação, imediatamente transfira a culpa para o trânsito, o Marc Zuckerberg, o governo, o capitalismo, a Al-Kaeda, os funkeiros, a copa, o alinhamento dos planetas, a receita federal, o cosmos. Sim, os fatores externos são muitos e fogem do nosso controle, mas não adianta simplesmente praguejar e continuar com a metralhadora em plena ação, exterminando inocentes sem um pingo de culpa ou responsabilidade. Mesmo com todas essas dificuldades, é só lembrar que sempre existem os pontuais, aqueles seres respeitosos que compreendem a barbaridade que é matar gente e são contra genocídios não apenas retoricamente.

Planejamento, cuidado, consideração, gestão de riscos. A única maneira digna de retribuir quem nos dá de presente algo tão raro e precioso.

E para não gastar mais seu tempo, fico por aqui, convidando-o a refletir: será que você não estaria participando de alguma matança sem perceber?

15 Responses

  1. 22 abril 2014 at 9:37 am

    A abordagem é chocante, mas tem todo sentido lógico.
    “Matar 20 minutos da vida de alguém ou 30 anos é só uma questão de escala.”
    É por isso que os meus cursos e aulas começam RIGOROSAMENTE no horário. Não quero fazer nenhuma chacina em sala de aula!

  2. 22 abril 2014 at 12:19 pm

    Lígia, o “atrasildus cronicus” é mais sério do que eu imaginava. Foi uma ótima reflexão.
    Ganhei alguns minutos lendo… Com certeza vou me lembrar disso nas próximas vezes em que eu puder evitar um atraso.

  3. Lucas Martins Gonzaga
    Responder
    22 abril 2014 at 11:13 pm

    Olá,
    Gostei muito da relação de semelhança, utilizada no texto, entre o atraso e assassinato. Lembro ainda que não atrasar (no caso de reuniões) é chegar ANTES do horário, pois em cima da hora é deixar o tempo dos outros por um fio. Todo ser humano é importante, portanto o tempo de cada um é precioso.

    • ligiafascioni
      Responder
      29 abril 2014 at 3:34 pm

      Muito bem observado, Lucas! Eu sempre me programo para chegar antes 🙂

  4. Marciane Faes
    Responder
    29 abril 2014 at 9:20 am

    Como a dimensão tempo perdido nos entristece, nos assusta, pensar na dimensão divina do tempo presente no salmo 90 nos traz algum alívio.

  5. 1 julho 2014 at 10:19 pm

    Sensacional, pertinente, verdadeiro. Escrevo com a carapuça enfiada na cabeça. Obrigada pela chacoalhada, minha querida e genial Lígia. Beijos com saudades.

  6. denise
    Responder
    2 julho 2014 at 9:58 am

    Maravilhoso o texto! Só senti falta do autor ou da fonte. Abraço, Denise

    • 2 julho 2014 at 10:01 am

      A autora sou eu mesma, Denise. E essa é a fonte original (meu blog). Abraços 🙂

  7. Natalia Godoy
    Responder
    3 julho 2014 at 2:50 am

    Nossa, achei medíocre dizer q o que temos de mais valioso na vida eh tempo. Pode ser q na sua seja, na minha Ñ. Tempo eh uma convenção, eh algo que não existe. O que existe são sentidos e percepções.
    De que vale o tempo pra uma pessoa em coma? Pra Vc ela não tem vida? E outra cada um eh livre pra fazer Oq bem entender da vida. Se pra Vc a pessoa está te matando por estar atrasada,
    pegue seu celular e vai ler, ouvir músicas, hoje em dia tem tanta coisa pra fazer que acredito que não exista mais o esperar..achei péssimo o texto e principalmente o vocabulário usado..assassinato?? Oi?? Acho q Vc precisaw viver mais, conhecer mais pessoas e ver como usar o seu tempo..vá conversar com um monge budista q meditou por anos e entenda Oq eh tempo pra ele. Vá a um asilo e pergunte às pessoas Oq eh tempo pra elas. Com toda certeza a sua percepção mudará e Vc não mais achará o fim do seu mundo uma pessoa atrasar.

    • Richard Lima
      Responder
      3 julho 2014 at 9:25 am

      Natalia, discordo de você. Acredito que em um asilo as pessoas gostariam de voltar ao tempo. Eu perco muito tempo no meu trabalho, e eu acho que o texto faz um sentido diferente do que nos estamos acostumados. Gostei muito Ligia.

    • ligiafascioni
      Responder
      4 julho 2014 at 5:18 am

      Oi, Natalia!
      Sempre é bom e saudável ter outros pontos de vista no debate. Entendo quando você diz que tempo é relativo, mas acredito que a gente não tenha o direito de impor aos outros nossa visão.

      Se respeito o horário combinado, a pessoa pode fazer o que quiser com o tempo dela: meditar, ouvir música, enfim. Se não respeito, estou obrigando-a a ver o mundo como um monge budista em estado de meditação… não tenho certeza, mas penso que os monges respeitam as diferenças e as convenções de tempo quando precisam interagir com outras pessoas.

      Pelo quase nada que entendo de budismo, respeito ao outro é um dos pilares mais importantes.

    • 23 fevereiro 2015 at 2:03 am

      Não se o post é original ou republicado, mais penso exatamente da mesma forma. Uma vez uma pessoa falou para mim que a maior prova de amor era o tempo. (Só se ele estiver passando por coisas boas ao lado da pessoa amada) Lógico que tempo vivido de forma intensa, esperar esperaro destino mudar a sua vida não é uma opção para quem não tem tempo a perder.

      • ligiafascioni
        25 fevereiro 2015 at 5:13 am

        Oi, Bruno!
        Todo o material postado aqui é original, exceto quando coloco entre aspas e indico o autor.
        Gostei muito da sua reflexão, descreve bem o que penso, obrigada!
        Abraços e sucesso!

  8. Regina Catia
    Responder
    26 julho 2014 at 12:11 pm

    Gostei do texto, já fui muito pontual e por ter ficado tantas vezes esperando outros, estou relapsa quanto a horários, valeu pela puxada de orelha, obrigada!!

    • ligiafascioni
      Responder
      27 julho 2014 at 8:33 pm

      De nada, disponha 😉

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