Quero ser rica

Você sabia que o brasileiro é o povo que mais consome celulares no mundo? O governo vende isso como vantagem (pois se até o recorde na compra de carros eles consideram sucesso em vez de ver que isso só reflete a falência do sistema de transporte coletivo, falar o quê, né?), mas a questão não é tão simples não, olha só porquê.

Uma pesquisa feita em 2010 (fonte aqui), revela que, além de celulares, o Brasil também compra mais televisões e notebooks que o resto do mundo. Não me admira, conheço gente que tem 3 telefones e “atualiza” o notebook todo ano (talvez alguns estejam participando, emocionados, da Rio+20); isso sem falar que no Brasil, até a casinha de cachorro tem TV própria.

Pois olha só que interessante: nos países ricos, 40% do povo que respondeu a pesquisa disse não ter nenhuma intenção de comprar eletrônicos em 2011. Já nos países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) a coisa é bem diferente: 91% da galera quer continuar na farra.

Reparando esse cenário de pessoas ensandecidas para se livrar de aparelhos em excelente estado de funcionamento, fico me lembrando de um conto de ficção científica que li há muitos anos e me impressionou muito.

O conto, de Frederik Pohl, chamado “O homem que comeu o mundo” conta a história de um menino que vive em algum lugar no futuro.

No mundo dele, onde a produção não pode parar de crescer, o consumo também não pode estabilizar. Sua família é muito pobre e, por isso, os pais são obrigados a passar os dias e as noites consumindo desenfreadamente em shoppings, bares e afins.

O menino mora numa casa imensa e se sente solitário com seus numerosos guardiães eletrônicos e montanhas de brinquedos inteligentes, trocados diariamente. E é profundamente infeliz.

Você pode pensar onde é que está o problema. Não é esse justamente o sonho de consumo de um monte de gente (talvez até, em certa medida, você eu?). Gastar insanamente, no melhor estilo Sex and City, como se não houvesse fatura de cartão de crédito amanhã?

Pois é, a questão é que o menino quer um quarto pequeno e aconchegante, e não um salão temático. Ele sonha em dormir abraçado todo dia com o mesmo ursinho de pelúcia, mas as versões mudam a cada dia e ele precisa acompanhar as tendências. Ele chora porque quer o colo da mãe, mas ela tem que consumir, e, além disso, os robôs-babás precisam ser testados. Ele quer brinquedos simples, mas tudo tem que interagir e desenvolver suas infantis capacidades cognitivas. Ele quer chorar, mas os mecanismos eletrônicos criados para acalmar crianças são insuportáveis e efadonhos.

Ele quer ser rico.

Rico é quem não precisa mais comprar. Rico é quem já tem o que precisa; rico não desperdiça, gosta das coisas que possui e não tem que servir de cobaia para novos lançamentos. Rico não sente a obrigação de ter, pode se preocupar apenas em ser. E o máximo dos máximos, os meninos ricos podem ficar com o mesmo ursinho de pelúcia até crescerem e eles mesmos decidirem quando não o querem mais.

Rico não precisa mostrar para todo mundo que tem o modelo mais caro da marca. Quem é rico mesmo, inclusive, encanta-se com o charme retrô das coisas usadas, aquelas gastas, que têm histórias para contar. Rico é aquele que tem muito mais que apenas dinheiro (e, às vezes, nem tem tanto assim).

Ok, nossa cultura não favorece, o mundo não facilita e os amigos não colaboram. Está cada vez mais difícil resistir aos lançamentos da Apple, mas acho que vale a pena pelo menos tentar.

Não sei vocês, mas eu já sei o quero ser quando crescer: milionária.

****

O conto citado, “The man who ate the world”, é parte do livro “The science fiction weight-loss book”, editado por Isaac Asimov em 1983.

20 Responses

  1. Silvano
    Responder
    17 junho 2012 at 5:50 pm

    Excelente artigo.

    Eu assisti recentemente um documentário contando a história da Obsolescência Programada, que mostra como os fabricantes diminuem o tempo de vida útil dos aparelhos, criando um círculo vicioso de produção e consumo.

    Link para o documentário: http://www.youtube.com/watch?v=o0k7UhDpOAo

  2. Clotilde*Fascioni
    Responder
    17 junho 2012 at 7:18 pm

    Ah, já eu queria ser pobre um dia na vida, porque todo dia é dureza viu? …

    • ligiafascioni
      Responder
      18 junho 2012 at 3:48 am

      Aahahaha… 🙂

  3. 18 junho 2012 at 9:57 am

    Ótimo artigo.
    Adorei o parentese sobre a venda excessiva de carros. Eu, que dependo muito do transporte público, fico sempre incomodado com o tal o IPI zero e todas essas regalias que aumentam o numero de carros nas ruas. Isso, além de refletir super mal do transporte público, piora cada dia mais o transito. Investem tanto em obras aqui e ali pra tentar compensar um problema que é criado diariamente. Pq não param de criar o problema pra não ter que resolve-lo? Ah, é mesmo: É chique fazer obra,é chique comprar carro. Pobre Brasil. Se nosso governo nos educasse e nos incentivasse a usar mais o transporte publico, como é em alguns paises RICOS europeus, quem sabe seriamos um pouco menos pobres.

    • ligiafascioni
      Responder
      18 junho 2012 at 5:18 pm

      Oi, Emmanuel!

      Pois é, uma das coisas que mais gosto aqui é que realmente não preciso de carro, posso fazer tudo usando transporte público ou bicicleta. Ter carro é um transtorno; a maioria dos prédios é muito antigo e não tem garagem; na rua tem poucos lugares para estacionar). Para incentivar ainda mais o transporte público e o uso de bicicletas (e de Vespas, charmosíssimas), o partido Verde está propondo limitar a 30 km/h a velocidade dos carros dentro do perímetro urbano. Adorei.
      No Brasil ainda se vive muito de aparência; carro não é só meio de transporte. É sinonimo de status. Bem coisa de pobre…ahahahah

      Beijocas 🙂

  4. 27 junho 2012 at 10:26 am

    Excelente artigo Ligia! Tudo é muita verdade!
    parabéns!!!

  5. Beatriz Fazolo
    Responder
    10 julho 2013 at 6:04 pm

    Ligia, acompanho sempre o blog e esse artigo é mais um dos excelentes que você produz!
    Ás pessoas acham que para serem ricas elas precisam ter bens materiais que “toda massa deseja”, objetos de “valor” (financeiro) alto…

    É bem da forma como eu penso!

    Valeu mesmo! Parabéns!

    Beijos

    • ligiafascioni
      Responder
      11 julho 2013 at 11:29 am

      Mas isso é bem coisa de novo rico, Beatriz. Aqui na Europa o povo tem paixão por brechó, mercado de pulgas e objetos que tenham algum significado ou história.
      Beijocas 🙂

      • Beatriz Fazolo
        11 julho 2013 at 4:04 pm

        Ihhh então tenho alma européia, que chato! hahahaha 🙂

      • ligiafascioni
        11 julho 2013 at 4:48 pm

        Aahahahaha… eu também adoro uma coisinha nova, mas já estou me descontaminando do vício consumista….ehehehehe

      • Beatriz Fazolo
        14 agosto 2013 at 4:21 pm

        Sim, isso é um vício.
        Nada impossível de ser controlado ou de ser pensado! 🙂

  6. 15 agosto 2013 at 9:25 am

    Lígia, dia desses vi uma frase que fica ecoando em minha mente e tem muito a ver com o texto acima. A frase dizia: “Precisamos nos tornar mais portáteis”.
    Não lembro o autor infelizmente, mas faz todo o sentido.
    É como somos quando viajamos de moto: Portáteis. Tudo que precisamos para 20, 40, 90 dias tem que caber em dois baús de alumínio e uma bolsa. O resto, acabamos descobrindo que não precisamos, nos empurraram e aceitamos.

    • ligiafascioni
      Responder
      19 agosto 2013 at 1:28 pm

      Viajar de moto ajuda bastante a prática de se tornar portátil, Vantuir. Aprendi a viajar sem comprar nada. Só trago fotografias – é tudo o que preciso 🙂
      Abraços !

  7. 15 agosto 2013 at 11:47 am

    Certa vez estava visitando um convento em Lisboa e a guia comentou com o grupo que brasileiro quando estava em Portugal, ao invés de apreciar a história local e conhecer lugares queriam saber os melhores locais para se comprar. Ela fechou com a frase “Brasileiro adora comprinhas!”, e a turma toda se sentiu ofendida. Eu conheço um grupo que de vez em quando se reúnem pra um almoço ou jantar e a conversa gira sempre em torno da última viagem e das “comprinhas” que fizeram. Normalmente eu fico sentada, observando e com aparência de ET por não participar dos assuntos.

    • Ana
      Responder
      15 agosto 2013 at 12:24 pm

      Hahaha! Heloiza, compartilho da sua experiência. Sempre que eu volto de viagem, meus familiares me perguntam “Foi a algum shopping?”. Eu digo “Pra quê? Shopping é tudo igual em qualquer lugar do mundo. Vou perder meu tempo com coisas que não conheço”

      • ligiafascioni
        19 agosto 2013 at 1:27 pm

        É exatamente isso, shopping é igual em todo lugar…

  8. Gustavo Fontanella
    Responder
    15 agosto 2013 at 6:04 pm

    Lígia,

    quando li este texto lembrei na hora desse cara que consegue ter uma vida simples e me parece ser muito feliz: https://www.youtube.com/watch?v=9cLGfnyx3DY

    • ligiafascioni
      Responder
      19 agosto 2013 at 1:26 pm

      Nossa, muito bacana mesmo essa história, Gustavo!
      Mas para ser sincera, a vida no campo não me tenta muito não. Acho lindo para passar um final de semana, mas preciso de cafés, livrarias, exposições, museu e gente… não cheguei nesse nível de evolução….rsrsrs
      Abraços e sucesso 🙂

  9. Lucas Martins Gonzaga
    Responder
    1 maio 2014 at 6:22 pm

    Vale lembrar também Zygmunt Bauman: “…e a liberdade consumidora que proporciona aos indivíduos líquidos o sonho de uma vida feliz que nunca chegará”.

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