The power

Imagine o seguinte: num belo dia, uma adolescente descobre que pode gerar choques elétricos só pela força do pensamento; pode criar arcos entre as mãos; pode até eletrocutar alguém, se quiser. Depois de um tempo, todas as mulheres, de todas as idades, passam a ter o mesmo poder. Instigante, não? Pois foi isso que a escritora britânica Naomi Alderman, imaginou e transformou em ficção especulativa.

Fiquei conhecendo a obra pelo ótimo podcast World Book Club, da BBC World Service, no episódio em que a escritora participou respondendo perguntas do mundo inteiro. Nunca tinha ouvido falar nessa obra fantástica e antológica, que já ganhou vários prêmios e tem, inclusive, tradução em português.

O livro não é fácil; cheio de camadas complexas, foi supostamente escrito por um homem que envia os originais para a autora avaliar. A troca de correspondência entre eles faz parte da narrativa (o que, se a gente analisar no final, foi um recurso genial usado pela autora e que explica muita coisa).

Logo que as garotas descobrem seu poder de ferir, machucar e até matar, o mundo entra em choque, pois claramente uma revolução está em curso: meninas estupradas em casa, mulheres em relacionamentos abusivos, garotas ameaçadas na rua, exércitos de escravas sexuais mantidas com o apoio de governos corruptos, profissionais desrespeitadas por colegas ou chefes, enfim; agora todas elas podem se proteger, se defender e até, se quiserem, se vingar.

É um mundo totalmente novo, onde pela primeira vez na história das civilizações, as mulheres não são presas fáceis e têm poder físico sobre os homens.

É claro que boa parte deles fica apavorado e quer reverter a situação o mais urgentemente possível; chegam a propor a criação de uma “vacina” para que esse perigo seja eliminado e a vida volte ao normal, segura e confortável (para quem?) como antes. 

A solução fácil, que seria colocar mulheres boazinhas contra homens malvados, é tentadora, mas simplória; a autora mostra ser mais inteligente que isso (na verdade, genial) e nos apresenta personagens complexos e cheios de nuances. 

ALLIE, uma menina americana adotada, abusada sexualmente por seu pai adotivo com consentimento da mãe, livra-se de seu algoz e vira uma líder religiosa. Ela fundando uma igreja (a igreja da Mãe Eva) e um império muito influente. 

ROXY, a filha de uma família de gângsters britânicos, consegue matar os assassinos da mãe (relações complicadíssimas) e se torna membro poderosa do clã. Ela lidera a produção e o tráfico de uma droga que potencializa o poder das mulheres. 

TUNDE, um rapaz nigeriano que filma as primeiras demonstrações do fenômeno e acaba virando repórter da CNN, viaja pelo mundo para cobrir a revolução feminina e corre todos os riscos possíveis em nome da notícia. 

MARGOT, uma política americana muito ambiciosa que quer proteger suas filhas e garantir o futuro delas. Ela acaba colocando em risco a vida de sua primogênita Jocelyn, que se encontra em plena crise da adolescência. 

TATIANA, uma esposa ressentida que assassina o marido ditador e vira presidente da Moldávia. Ela cria o primeiro país da nova ordem, que passa a se chamar Bessapara. 

Tatiana enlouquece aos poucos, assim como boa parte das mulheres. Muitas vão perdendo o controle e se comportando como os machos mais sórdidos em termos de perversidades.

Homens desacostumados a não ter o poder se organizam com a ajuda das redes sociais e de fake news para montar uma estrutura terrorista com o objetivo de “defender seus direitos”. Ora, ora…

A situação vai escalando e ficando cada vez mais grave, a ponto de s desenhar uma espécie de Handmaid’s Tale às avessas. Inclusive, Margaret Atwood é uma das apoiadoras da autora; ela aparece nos agradecimentos por tê-la ajudado em primeira mão com contribuições de quem domina a arte da distopia.

E, como toda distopia é muito perturbadora. Faz a gente pensar. Incomoda. Atordoa. Inquieta. Desnorteia.

Não tem como deixar de ler. 

Recomendo muitíssimo.

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