Dia desses, lembrei-me de um fato que ocorreu durante uma viagem de carro a trabalho. Ao passar por um comerciante de beira de estrada que vendia cuias de chimarr\u00e3o, peles e outros apetrechos campeiros, uma das passageiras murmurou num tom confessional: \u201cPor mim, a minha casa seria cheia desses objetos. Sei que n\u00e3o \u00e9 bonito, mas eu gosto. N\u00e3o compro porque tenho vergonha, \u00e9 muito brega<\/em>\u201d. Fiquei triste com o desconforto dela em assumir sua sensibilidade est\u00e9tica com tanta retic\u00eancia, como se fosse errado gostar daquilo que n\u00e3o est\u00e1 na moda. A mo\u00e7a vivia num dilema entre parecer hype<\/em> e assumir o que a emocionava.<\/p>\n

O mundo est\u00e1 cheio de casos assim: pessoas que t\u00eam vergonha de admitir que v\u00e3o \u00e0s l\u00e1grimas ao som de Bruno e Marrone; que n\u00e3o contam para ningu\u00e9m que adorariam ter um tapete com o bras\u00e3o do seu time bem no meio da sala em vez daqueles desenhos estranhos que n\u00e3o lhe dizem nada; que adoram cadeiras de espaldar alto laqueadas na cor vinho em tons degrad\u00ea; que n\u00e3o admitem nem sob tortura seu amor por bibel\u00f4s comprados no R$ 1,99. Confesso: tudo que descrevi acima \u00e9 horr\u00edvel para mim, de doer os olhos. Mas o que importa a minha opini\u00e3o se n\u00e3o serei eu a morar na casa, a escutar a m\u00fasica, a olhar esses objetos todo dia? \u00c0s favas com o gosto alheio! Cada um tem o direito de construir seu pr\u00f3prio ninho como melhor lhe conv\u00e9m.<\/p>\n

E, afinal, o que \u00e9 belo? O que \u00e9 feio? As perguntas j\u00e1 torturavam fil\u00f3sofos desde a Gr\u00e9cia antiga, e a discuss\u00e3o permanece inacabada. A aten\u00e7\u00e3o sobre o belo sempre foi t\u00e3o presente na hist\u00f3ria do pensamento humano que a palavra cosmos<\/em>, usada para designar o universo, significa exatamento isso: belo<\/em> (\u00e9 da\u00ed tamb\u00e9m que vem a palavra cosm\u00e9tica).<\/p>\n

Depois de muito pensar, os gregos chegaram ao consenso de que h\u00e1 tr\u00eas esp\u00e9cies de beleza: a\u00a0est\u00e9tica<\/strong> (relacionada \u00e0 forma f\u00edsica das coisas), a\u00a0moral<\/strong> (relacionada ao estado da alma) e a\u00a0espiritual<\/strong> ou intelectual<\/strong> (relacionada ao conhecimento). H\u00e1 debates sem fim sobre o assunto em livros dedicados ao tema, alguns muito dif\u00edceis de acompanhar (pelo menos para mim).<\/p>\n

Para simplificar, vamos combinar que a beleza que estamos discutindo aqui \u00e9 a est\u00e9tica, aquela percebida pelos nossos sentidos. A \u201cIntrodu\u00e7\u00e3o \u00e0 filosofia da arte<\/em><\/strong>\u201d, de Benedito Nunes, define o belo como \u201co que agrada ver e ouvir<\/em>\u201d. Ele ainda acrescenta que o reconhecimento da beleza \u00e9 uma esp\u00e9cie de vis\u00e3o interior que permite ao observador deliciar o esp\u00edrito na experi\u00eancia da frui\u00e7\u00e3o. Apesar de haver muitas defini\u00e7\u00f5es completas e esclarecedoras, agrada-me muito a que apresenta o \u201cGlosario del dise\u00f1o<\/em>\u201d (Jorge Filippis): \u201cbeleza: propriedade das coisas que nos fazem am\u00e1-las, infundindo em n\u00f3s deleite espiritual<\/em>\u201d.<\/p>\n

Pois \u00e9. Voltemos \u00e0 mo\u00e7a do primeiro par\u00e1grafo. Cuias, pelegos e afins n\u00e3o a deixam feliz? N\u00e3o trazem conforto, boas sensa\u00e7\u00f5es, paz de esp\u00edrito? N\u00e3o despertam amor no seu ser, n\u00e3o agradam os seus sentidos? Ent\u00e3o, quem est\u00e1 autorizado a dizer que esses objetos n\u00e3o s\u00e3o belos?<\/p>\n

O belo tem a ver com a percep\u00e7\u00e3o, que \u00e9 aquilo que a gente faz com o que os nossos sentidos conseguem captar. As refer\u00eancias est\u00e9ticas e culturais s\u00e3o uma verdadeira babel, o que emociona um \u00e9 totalmente indiferente ao outro, o que \u00e9 sublime para algu\u00e9m pode ser insuport\u00e1vel para outrem. Como as pessoas s\u00e3o diferentes, com hist\u00f3rias e contextos distintos e, por conseguinte, gostos diversos, \u00e9 praticamente imposs\u00edvel determinar objetivamente o que \u00e9 belo e o que \u00e9 feio.<\/p>\n

Ent\u00e3o por que deixar que gente esquisita, que voc\u00ea nem conhece, determine o que \u00e9 feio e o que \u00e9 bonito na sua vida? Por que sofrer para gostar \u201cdas coisas certas\u201d se elas mudam junto com a moda, com o sucesso, com as conven\u00e7\u00f5es? Por que se acostumar a acatar sentimentos estranhos aos seus, que nada t\u00eam a ver com a sua hist\u00f3ria? Por que achar que a opini\u00e3o de algu\u00e9m que aparece na revista \u00e9 mais importante que a sua?<\/p>\n

Cada um \u00e9 lindo do seu jeito e constr\u00f3i o mundo ao seu redor da maneira como lhe emociona, lhe comove, lhe encanta. Coragem, vai l\u00e1, tira o ping\u00fcim da gaveta e p\u00f5e em cima da geladeira. Inclusive, ouvi dizer que agora \u00e9 chique\u2026<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Por que deixar que gente esquisita, que voc\u00ea nem conhece, determine o que \u00e9 feio e o que \u00e9 bonito na sua vida? Por que sofrer para gostar \u201cdas coisas certas\u201d se elas mudam junto com a moda, com o sucesso, com as conven\u00e7\u00f5es? Por que se acostumar a acatar sentimentos estranhos aos seus, que nada t\u00eam a ver com a sua hist\u00f3ria? Por que achar que a opini\u00e3o de algu\u00e9m que aparece na revista \u00e9 mais importante que a sua?<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":26241,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_jetpack_newsletter_access":"","_jetpack_dont_email_post_to_subs":false,"_jetpack_newsletter_tier_id":0,"_jetpack_memberships_contains_paywalled_content":false,"footnotes":"","two_page_speed":[],"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false},"categories":[45,29,46,23,24,38,26,55,39],"tags":[],"jetpack_sharing_enabled":true,"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-content\/uploads\/2011\/02\/IMG_2238.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/10359"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=10359"}],"version-history":[{"count":2,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/10359\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":26243,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/10359\/revisions\/26243"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/26241"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=10359"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=10359"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=10359"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}