Desde que o pai abandonou a fam\u00edlia, a m\u00e3e de Afonso* teve que deixar o pequeno, de cinco anos, cuidando do irm\u00e3o de dois para trabalhar garantir o sustento da fam\u00edlia. Eles passavam o dia todo sozinhos vagando pela comunidade, sem nenhuma disciplina ou cuidado. Afonso\u00a0vivia na rua e acostumou-se a ser tratado como o cachorro vira-lata; quase nunca ia \u00e0 aula. No in\u00edcio da adolesc\u00eancia, quis ajudar a m\u00e3e que ficou doente, mas como n\u00e3o tinha estudo e nenhum tipo de educa\u00e7\u00e3o, o crime acabou sendo o caminho natural. \u00c9 claro que foi preso. E pres\u00eddios, pelo menos no Brasil, onde seu nome foi trocado por um n\u00famero e dividiu com 70 pessoas uma cela em que s\u00f3 havia 16 colch\u00f5es, n\u00e3o s\u00e3o o lugar mais indicado para quem quer sair dessa vida.<\/p>\n

Foi a\u00ed que surgiu a oportunidade de ir para uma unidade APAC (Associa\u00e7\u00e3o de Prote\u00e7\u00e3o e Assist\u00eancia aos Condenados) e agora Afonso\u00a0me diz que pela primeira vez na vida est\u00e1 sendo tratado com respeito e dignidade. Que pela primeira vez na vida est\u00e1 se sentindo gente. Que pela primeira vez na vida consegue enxergar um futuro.<\/p>\n

Na APAC a disciplina \u00e9 militar; tem hora para tudo, o comportamento \u00e9 avaliado em cada item (esquecer de colocar o crach\u00e1, por exemplo, \u00e9 um ponto que o condenado perde; cama mal feita, mais 1 ponto; se juntar 10 pontos corre o risco de voltar para o pres\u00eddio comum, o que, para eles, \u00e9 quase mais assustador que a morte). A equipe de funcion\u00e1rios que administra as unidades \u00e9 enxut\u00edssima, j\u00e1 que a maior parte do trabalho \u00e9 feita pelos pr\u00f3prios presos, incluindo guardar a porta da entrada (sim, isso mesmo que voc\u00ea leu, n\u00e3o tem pol\u00edcia l\u00e1 para fazer esse trabalho). Nas unidades\u00a0eles fazem v\u00e1rios cursos, incluindo aulas de primeiro e segundo graus que a maioria n\u00e3o teve, marcenaria (sim, eles lidam com chaves, martelos, facas e outras armas impens\u00e1veis num pres\u00eddio comum) e qualquer outro tema que volunt\u00e1rios oferecerem. Para cada 3 dias\u00a0trabalhados \u00e9 reduzido\u00a0um dia da pena.<\/p>\n

O seu C\u00e9sar*, um tiozinho muito querido, mostra com orgulho a horta que est\u00e1 cultivando num terreno sem muro que pertence \u00e0 APAC. A horta \u00e9 linda mesmo, mas a hist\u00f3ria dele \u00e9 mais. Seu Cesar\u00a0n\u00e3o cometeu crime nenhum, mas tem 40 anos para cumprir. Ele foi apresentado como inocente \u00fatil por um grupo de criminosos da pesada que morava no bairro. Como \u00e9 analfabeto e n\u00e3o faz a menor ideia de como a justi\u00e7a funciona, nunca teve advogado;\u00a0simplesmente foi condenado e mandado para um pres\u00eddio. A comunidade onde ele mora ficou t\u00e3o sensibilizada com o caso\u00a0que reuniu 600 assinaturas\u00a0pedindo para envi\u00e1-lo a uma APAC. Seu C\u00e9sar\u00a0passa os dias cuidando da horta que abastece a cozinha do lugar (almocei l\u00e1 e a comida \u00e9 \u00f3tima), que fica a menos de 2 km da sua casa.<\/p>\n

Como a equipe contratada para tomar conta dessas unidades \u00e9 muito enxuta e os pr\u00f3prios presos mant\u00eam o lugar limpo e arrumado, al\u00e9m de trabalhar e estudar em tempo integral, o custo \u00e9 muito baixo se comparado a\u00a0pres\u00eddios comuns. Al\u00e9m disso, o \u00edndice de reincid\u00eancia no crime, que no sistema prisional convencional chega a 86%, \u00e9 inferior a\u00a05% na APAC (fonte aqui<\/a>).<\/p>\n

O modelo das APACs foi criado\u00a0em 1972 pelo advogado e jornalista Mario Ottoboni e foi exportado para v\u00e1rios pa\u00edses, inclusive, ora veja, a Alemanha. Tema de v\u00e1rias teses e disserta\u00e7\u00f5es, \u00e9 um sucesso indiscut\u00edvel.<\/p>\n

S\u00f3 uma compara\u00e7\u00e3o bem b\u00e1sica: numa APAC, a refei\u00e7\u00e3o \u00e9 preparada pelos pr\u00f3prios detentos. Numa penitenci\u00e1ria, cada quentinha comprada por licita\u00e7\u00e3o custa R$ 25 (isso mesmo: quase mais do que voc\u00ea gasta para almo\u00e7ar). \u00c9 claro que os presos n\u00e3o comem esse valor, h\u00e1 v\u00e1rias den\u00fancias de comida podre; agora imagine o potencial para desviar recursos que um sistema com mais de 500 mil detentos\u00a0oferece, sem contar a pr\u00e1tica constante de suborno a funcion\u00e1rios e fac\u00e7\u00f5es do crime organizado trabalhando l\u00e1 dentro.<\/p>\n

Oportunidade de roubar: esse \u00e9 o motivo pelo qual o pessoal que decide (que merecia muito bem\u00a0estar atr\u00e1s das grades) insiste no modelo falido e car\u00edssimo dos pres\u00eddios, enquanto as APACs ainda s\u00e3o minoria (cerca de 100\u00a0no Brasil inteiro, que atendem pouco mais de 2 mil apenados ).<\/p>\n

\u00c9 claro que funcionando de maneira t\u00e3o eficiente, a APAC n\u00e3o poderia\u00a0pertencer ao governo; \u00e9 organizada\u00a0e administrada como sociedade civil\u00a0e\u00a0se mant\u00e9m com\u00a0doa\u00e7\u00f5es de pessoas f\u00edsicas, jur\u00eddicas e entidades religiosas, parcerias e conv\u00eanios com o Poder P\u00fablico, institui\u00e7\u00f5es educacionais e outras entidades, al\u00e9m\u00a0das contribui\u00e7\u00f5es de seus s\u00f3cios.<\/span><\/p>\n

O Tio Fl\u00e1vio<\/a> \u00e9 um dos meus amigos mais queridos, com quem tenho muita afinidade e amo como a um irm\u00e3o.\u00a0Indignado com essa situa\u00e7\u00e3o absurda e injusta, est\u00e1 trabalhando firme para provocar a mudan\u00e7a. Foi ele quem me levou para dar uma palestra para os detentos do regime fechado da APAC de Nova Lima, em Minas Gerais. Imposs\u00edvel n\u00e3o se emocionar com as hist\u00f3rias, impens\u00e1vel n\u00e3o se envolver num projeto t\u00e3o promissor como esse, que faz a gente ter a esperan\u00e7a de que ainda h\u00e1 uma sa\u00edda.<\/p>\n

De minha parte, o Tio Fl\u00e1vio<\/a> ganhou uma aliada. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que o maior n\u00famero poss\u00edvel de pessoas saiba da exist\u00eancia desse caminho e que a press\u00e3o para que esse modelo prevale\u00e7a seja\u00a0cada vez maior.<\/p>\n

Bora exigir justi\u00e7a, minha gente?<\/p>\n

—-<\/p>\n

* Os nomes foram trocados.<\/p>\n

* Agrade\u00e7o do fundo do meu cora\u00e7\u00e3o pela oportunidade ao meu querido amigo Tio Fl\u00e1vio<\/a> e \u00e0 toda a equipe da APAC Nova Lima<\/a> que me recebeu de forma t\u00e3o acolhedora e carinhosa; foi muito dif\u00edcil segurar o choro quando eles cantaram uma ora\u00e7\u00e3o para expressar as boas vindas.<\/p>\n

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