Desde que aprendi a ler, desenvolvi\u00a0um v\u00edcio dif\u00edcil de largar: devoro\u00a0toda palavra impressa que aparece no meu campo de vis\u00e3o. Isso inclui cartazes nas paredes, folhetos diversos, livros, placas, qualquer coisa. \u00c9 mais forte que eu, n\u00e3o consigo evitar.<\/p>\n

Eis que o neg\u00f3cio piorou muito desde que me mudei para a Alemanha, pois voltei aos meus seis anos de idade e quero ler tudo o que aparece para tentar entender a l\u00edngua e a cultura do lugar. E a cultura est\u00e1 nos lugares onde a gente menos espera: nos r\u00f3tulos das embalagens, por exemplo.<\/p>\n

No Brasil, os produtos todos trazem aquela\u00a0frase amea\u00e7adora e suas variantes: consumir at\u00e9 data tal. Prazo de validade: data tal. Consumir no m\u00e1ximo at\u00e9 data tal. N\u00e3o consumir depois da data tal.\u00a0A gente morre de medo de ultrapassar um dia sequer, a impress\u00e3o \u00e9 que a pessoa vai morrer se tomar um sorvete que venceu ontem.<\/p>\n

A\u00ed, quando cheguei na Alemanha, achei estranh\u00edssima a frase: \u201cmindestens haltbar bis<\/i>: data tal\u201d. \u00c9 que mindestens<\/i> \u00e9 no m\u00ednimo, pelo menos. Haltbar<\/i> \u00e9 dur\u00e1vel, conserv\u00e1vel, resistente. Eu n\u00e3o entendia e pensava: como assim, m\u00ednimo? Eles deviam dizer que esse \u00e9 o prazo m\u00e1ximo! N\u00e3o faz sentido escrever isso no r\u00f3tulo, est\u00e1 invertido.<\/p>\n

A\u00ed fui entender a tal da cultura por tr\u00e1s desse aviso inocente. Interpretando corretamente a frase, l\u00e1\u00a0est\u00e1 escrito que eles garantem que o produto est\u00e1 bem conservado pelo menos<\/i> at\u00e9 essa data. Pode ser que ele esteja bom depois, mas a\u00ed voc\u00ea vai ter que usar seu bom senso para saber. Mas no m\u00ednim<\/i>o at\u00e9 essa data, tudo deve estar ok.<\/p>\n

Deu para perceber a diferen\u00e7a sutil de abordagem?<\/p>\n

Na nossa cultura, voc\u00ea precisa consumir o produto at\u00e9 a data tal de qualquer maneira. Na cultura alem\u00e3 (ou europeia, n\u00e3o sei), n\u00e3o h\u00e1 uma amea\u00e7a velada. Apenas uma recomenda\u00e7\u00e3o, apresentada de uma maneira, a meu ver, um pouco mais positiva. \u00c9 claro que as mensagens mais restritivas no Brasil \u00a0podem ser porque ele nunca passou por uma guerra, porque \u00e9 bem mais jovem e consumista ou at\u00e9 por causa do calor; num pa\u00eds tropical, essas quest\u00f5es de validade s\u00e3o mais s\u00e9rias. De qualquer maneira,\u00a0achei interessante.<\/p>\n

Talvez essa diferen\u00e7a de vis\u00e3o\u00a0seja respons\u00e1vel por\u00a0tantas iniciativas de sucesso na Europa com lojas que s\u00f3 vendem\u00a0produtos de validade vencida ou pr\u00f3ximas do prazo com pre\u00e7os bem menores, como essa,\u00a0na Dinamarca<\/a>. No Brasil, imagino que\u00a0seria complicad\u00edssimo.<\/p>\n

Lembrei disso porque minha m\u00e3e publicou\u00a0um texto de humor onde ela descrevia uma cena em que tr\u00eas pessoas com \u201cdata de validade quase vencendo\u201d estavam sentadas num caf\u00e9. No Brasil, logo estariam, para continuar a met\u00e1fora, \u201cimpr\u00f3prias para consumo\u201d. Na Alemanha, onde a idade m\u00e9dia da popula\u00e7\u00e3o \u00e9 mais alta, elas estariam \u201cna garantia\u201d at\u00e9 o prazo, mas depois poderiam continuar\u00a0\u00f3timas; dependeria muito das condi\u00e7\u00f5es de conserva\u00e7\u00e3o\u2026rsrs<\/p>\n

Essas diferen\u00e7as s\u00e3o muito sutis e delicadas, mas ampliam nossa vis\u00e3o do mundo. Quem diria que d\u00e1 para aprender tanto lendo r\u00f3tulos?<\/p>\n

***<\/p>\n

NOTA: a legisla\u00e7\u00e3o brasileira de r\u00f3tulos de embalagens d\u00e1 um banho na Europeia, na minha opini\u00e3o. N\u00e3o \u00e9 raro comprar produtos sem ter a m\u00ednima ideia da origem e de onde s\u00e3o produzidos. Aquelas tabelas nutricionais s\u00f3 aparecem \u00e0s vezes.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Quem diria que uma frase colocada no r\u00f3tulo de um produto pode nos dizer tanto sobre a cultura de um lugar?<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":24000,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_jetpack_newsletter_access":"","_jetpack_dont_email_post_to_subs":false,"_jetpack_newsletter_tier_id":0,"_jetpack_memberships_contains_paywalled_content":false,"footnotes":"","two_page_speed":[],"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false},"categories":[45,46,23,27,24,25,99],"tags":[],"jetpack_sharing_enabled":true,"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-content\/uploads\/2017\/02\/IMG_3707.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23998"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=23998"}],"version-history":[{"count":18,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23998\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":24018,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23998\/revisions\/24018"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/24000"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=23998"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=23998"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=23998"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}