Quando entrei na universidade, nos idos de 1984 (meldelz, s\u00e3o mais de 30 anos!), tinha uma disciplina obrigat\u00f3ria chamada Pr\u00e1tica Desportiva<\/em>, com turmas separadas por g\u00eanero. No curso de Engenharia El\u00e9trica a turma era de 50 nerds; eu era a \u00fanica \u201cnerda\u201d. N\u00e3o dava para formar nem uma dupla para jogar peteca; tentei me encaixar nas turmas de nutri\u00e7\u00e3o ou pedagogia, mas o problema \u00e9 que para os\u00a0hor\u00e1rios dispon\u00edveis, s\u00f3 tinha futebol ou handebol. Minha estrutura \u00f3ssea \u00e9 pequena, de maneira que sempre me dei muito mal em jogos onde \u00e9 necess\u00e1ria luta corporal de alto impacto pela posse da bola. Foi ent\u00e3o que descobri que a universidade tinha um grupo de jazz, com aulas \u00e0 noite, e o melhor, valendo cr\u00e9ditos para a tal Pr\u00e1tica Desportiva.<\/p>\n

Como nunca dan\u00e7amos ao som do trompete de Miles Davis, tenho para mim que esse nome tem algo a ver com o maravilh\u00e1stico musical All That Jazz<\/i>, sucesso alguns anos antes. Pelo menos a trilha sonora do filme era onipresente nos ensaios. Resumo: passei os cinco anos do curso dan\u00e7ando, mesmo quando os cr\u00e9ditos n\u00e3o valiam mais.<\/p>\n

Eis que em meados de setembro do ano passado, passando pela frente de uma escola de m\u00fasica aqui perto de casa, vi que havia vagas para dan\u00e7a e me inscrevi. Depois de um teste, comecei as aulas de dan\u00e7a-teatro, uma coisa que nunca tinha experimentado\u00a0na vida. Alguns anos antes havia assistido o maravilhoso document\u00e1rio do Wim Wenders sobre a core\u00f3grafa que \u00e9 a principal refer\u00eancia em dan\u00e7a-teatro no mundo, a alem\u00e3 Pina Bausch, mas, na \u00e9poca, n\u00e3o liguei o nome \u00e0 pessoa.<\/p>\n

De cara, fui escalada para uma apresenta\u00e7\u00e3o e j\u00e1 mergulhei de cabe\u00e7a nos ensaios que estavam em andamento. Nas aulas de dan\u00e7a que havia frequentado at\u00e9 ent\u00e3o, participar da apresenta\u00e7\u00e3o come\u00e7ando os ensaios a menos de duas semanas do evento seria imposs\u00edvel. Mas na dan\u00e7a-teatro \u00e9. Porque \u00e9 diferente. Porque tem tudo a ver com inova\u00e7\u00e3o, colabora\u00e7\u00e3o, repert\u00f3rio, criatividade e, principalmente, improviso.<\/p>\n

Em todas as aulas que eu tinha feito no passado, a core\u00f3grafa inventava os passos, movimentos, desenhos,\u00a0tempos, e qual grupo fazia o qu\u00ea em cada momento da m\u00fasica. A n\u00f3s, bailarinos, s\u00f3 restava ensaiar e repetir exaustivamente os movimentos at\u00e9 que fossem automatizados de maneira que finalmente pod\u00edamos realmente dan\u00e7ar.<\/p>\n

Na dan\u00e7a-teatro \u00e9 completamente diferente: ningu\u00e9m repete nada. A core\u00f3grafa \u00e9 a respons\u00e1vel pela mensagem a ser transmitida, pela m\u00fasica e pelos diferentes momentos da performance, mas n\u00e3o define passos nem movimentos. Isso fica por conta da criatividade e repert\u00f3rio do bailarino.<\/p>\n

Tanto \u00e9 que fiquei muit\u00edssimo confusa \u00e0s v\u00e9speras da apresenta\u00e7\u00e3o porque a professora queria ver meu Ablauf<\/i>. N\u00e3o entendi lhufas; procurei um dicion\u00e1rio para ver se tinha alguma outra tradu\u00e7\u00e3o que se encaixasse no contexto (Ablauf<\/i> \u00e9 decurso, evolu\u00e7\u00e3o, expira\u00e7\u00e3o). S\u00f3 depois \u00e9 que, com a ajuda das colegas, descobri que cada bailarino deveria fazer desenhos mostrando sua posi\u00e7\u00e3o em cada parte da m\u00fasica e as respectivas palavras-chave orientativas (tipo alegria, energia, crescimento, dor, etc), para facilitar a memoriza\u00e7\u00e3o e dar tudo certo no final. Gente, se isso n\u00e3o \u00e9 co-cria\u00e7\u00e3o em seu estado mais puro, ent\u00e3o n\u00e3o sei o que \u00e9.<\/p>\n

Outra coisa que aprendi \u00e9 que, ao contr\u00e1rio das minhas aulas anteriores, onde eu deixava o c\u00e9rebro em casa e passava o tempo relaxando e repetindo movimentos, nessas aulas sou obrigada a criar conex\u00f5es neuronais em escala industrial.<\/p>\n

O que acontece \u00e9 que a\u00a0gente recebe instru\u00e7\u00f5es desafiadoras o tempo todo; ali\u00e1s, a palavra teatro como parte do nome n\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa. Por exemplo: numa das tarefas, \u00e9 preciso imaginar que h\u00e1 uma bola de fogo passeando pelo interior do meu corpo. E isso precisa ficar claro para quem est\u00e1 assistindo. Ou ent\u00e3o tenho que contar uma hist\u00f3ria triste usando apenas as m\u00e3os durante toda a dan\u00e7a. Ou s\u00f3 os dedos dos p\u00e9s. Ou os cotovelos. Ou usar uma\u00a0lanterna para expressar sofrimento profundo. Ou tratar, durante a evolu\u00e7\u00e3o de uma coreografia, dois peda\u00e7os de madeira como se fossem talism\u00e3s preciosos. Ou ainda, dan\u00e7ar completamente fora do compasso da m\u00fasica (isso foi realmente uma das coisas mais dif\u00edceis que experimentei); ou interagir com um espelho simulando um encontro interno; ou dan\u00e7ar com uma cabe\u00e7a de isopor como se fosse uma pessoa importante na minha vida; ou travar uma batalha com mais duas bailarinas, aliando-me, ora \u00e0 uma, ora \u00e0 outra (a sincroniza\u00e7\u00e3o deve ser s\u00f3 pelo olhar, j\u00e1 que tudo \u00e9 improviso); ou manipular um objeto imagin\u00e1rio, como uma pena, uma bola de luz ou um martelo pesado; ou, como na apresenta\u00e7\u00e3o inicial, imaginar que voc\u00ea \u00e9 uma chama que se junta aos colegas ao longo da m\u00fasica at\u00e9 formar uma fogueira. Tudo isso dan\u00e7ando. Em alem\u00e3o. Est\u00e3o acompanhando o n\u00edvel do neg\u00f3cio? Olha, n\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil n\u00e3o. Ainda mais que ningu\u00e9m l\u00e1 usa dorgas<\/i>, at\u00e9 onde sei\u2026.rsrs<\/p>\n

Outra coisa que me chamou aten\u00e7\u00e3o \u00e9 que aqui a criatividade e a express\u00e3o s\u00e3o mais importantes que o rigor t\u00e9cnico; ou seja, em princ\u00edpio, qualquer um pode praticar, independente de suas condi\u00e7\u00f5es f\u00edsicas ou experi\u00eancia anterior (claro, n\u00e3o estou falando de um grupo profissional).<\/p>\n

A dan\u00e7a-teatro, al\u00e9m me apresentar um novo e maravilhoso lado do mundo da dan\u00e7a que eu desconhecia completamente, ainda me mostrou como meu repert\u00f3rio corporal \u00e9 pobre, limitado e pouco criativo. Eu me achava muito descolada e acreditava que ia tirar de letra cada tarefa dessas, mas depois dos primeiros 40 segundos, vejo que j\u00e1 gastei absolutamente tudo o que tinha pensado em termos de movimento e me vejo desesperada procurando\u00a0ideias. Um repert\u00f3rio colecionado por cinco d\u00e9cadas dan\u00e7ando como se n\u00e3o houvesse amanh\u00e3 na sala de casa parece que at\u00e9\u00a0d\u00e1 para o gasto, mas \u00e9 praticamente nada se a gente for testar de verdade. E sempre ainda tem mais uns dois ou tr\u00eas minutos de m\u00fasica para desenvolver e dar um jeito de inventar movimentos novos. Pensa. Gin\u00e1stica mental n\u00edvel hard<\/em>.<\/p>\n

A conclus\u00e3o que chego \u00e9 que dan\u00e7a-teatro deveria fazer parte de cursos de inova\u00e7\u00e3o como pr\u00e9-requisito. Tem quebra de conven\u00e7\u00f5es, exerc\u00edcios de criatividade, co-cria\u00e7\u00e3o, colabora\u00e7\u00e3o, prototipagem, desenvolvimento de solu\u00e7\u00e3o de problemas e ainda faz bem para o corpo e para a mente.<\/p>\n

Fica a dica. \u00c9 bom demais da conta!<\/p>\n

NOTA 1:<\/strong> A experi\u00eancia relatada \u00e9 baseada apenas nesses meses de curso, nessa escola, com essa core\u00f3grafa. Uma amiga que fez dan\u00e7a-teatro na It\u00e1lia me contou que as coisas l\u00e1 s\u00e3o um pouco diferentes. N\u00e3o fa\u00e7o ideia de como \u00e9 no Brasil.<\/p>\n

NOTA 2:<\/strong> Quero agradecer especialmente \u00e0 core\u00f3grafa Hanne Franziska Bender<\/a>, pela sua paci\u00eancia e queridice. E \u00e0 nossa luxuosa pianista Olga Pancenko<\/em>, que tem que dar um jeito de escolher e tocar m\u00fasicas que ajudem nos desafios\u2026rs<\/p>\n

NOTA 3:<\/strong> As fotos s\u00e3o todas do meu amor Conrado Seibel. Ele fez dois v\u00eddeos tamb\u00e9m; para quem tiver curiosidade de ver, \u00e9 s\u00f3 clicar aqui<\/a> e aqui<\/a>.<\/p>\n