A gente sabe que ser negro neste mundo n\u00e3o \u00e9 uma tarefa para amadores. Mas no Brasil, as coisas, que nunca foram f\u00e1ceis, t\u00eam piorado muito nos anos recentes. Al\u00e9m da matan\u00e7a institucionalizada pela pr\u00f3pria pol\u00edcia quando invade comunidades e mata at\u00e9 crian\u00e7as pequenas, como aconteceu no ano passado, tem tamb\u00e9m os \u201ccidad\u00e3os de bem\u201d atuando de forma proativa para o exterm\u00ednio. <\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 alguns dias o congol\u00eas de apenas 24 anos, Mo\u00efse Kabagambe, foi espancado at\u00e9 a morte por ter reclamado do n\u00e3o pagamento do seu sal\u00e1rio no kioske de praia onde trabalhou, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. A barb\u00e1rie aconteceu em plena luz do dia. Os suspeitos presos dizem que est\u00e3o de consci\u00eancia tranquila, pois n\u00e3o tiveram a inten\u00e7\u00e3o de matar (imagina se tivessem). <\/p>\n\n\n\n

Poucos dias depois, num condom\u00ednio em S\u00e3o Gon\u00e7alo, no mesmo Rio de Janeiro, Durval Te\u00f3filo Filho, 38 anos, foi assassinado a tiros por seu pr\u00f3prio vizinho ao ser confundido com um assaltante (tinha esquecido a chave e esperava a mulher abrir o port\u00e3o para que ele pudesse entrar). <\/p>\n\n\n\n

Adivinha a cor dos dois?<\/p>\n\n\n\n

S\u00e3o dois casos que tomaram as p\u00e1ginas dos jornais, mas \u00e9 certo que h\u00e1 muitos outros que passam batido e a gente nem fica sabendo.<\/p>\n\n\n\n

Pois foi nesse clima que devorei o excelente \u201cO avesso da pele<\/em><\/strong>\u201d, de Jeferson Ten\u00f3rio, que conta a hist\u00f3ria da fam\u00edlia de um rapaz negro no final da adolesc\u00eancia, logo que come\u00e7a a cursar a faculdade de arquitetura, o Pedro.<\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n

Para come\u00e7ar, a estrutura narrativa \u00e9 as mais criativas que j\u00e1 vi. A hist\u00f3ria \u00e9 contada pelo Pedro, mas ele vai descrevendo como cada personagem viveu e sentiu cada situa\u00e7\u00e3o como se estivesse l\u00e1. <\/p>\n\n\n\n

\u00c9 uma esp\u00e9cie de despedida e acerto de contas com o pai, Henrique, assassinado, veja s\u00f3, por engano, por um policial que o confundiu com um criminoso na sa\u00edda da escola onde era professor.<\/p>\n\n\n\n

Um exemplo, quando ele relata de um dia na vida do pai: \u201cVoc\u00ea sabia que n\u00e3o podia continuar na cama, pois minutos a mais te fariam perder o \u00f4nibus (\u2026). No \u00f4nibus, \u00e0s vezes, voc\u00ea cochilava e sentia que o mundo inteiro tamb\u00e9m cochilava.<\/em>\u201d Ele descreve sentimentos e situa\u00e7\u00f5es que n\u00e3o teria como ter presenciado. Por outro lado, a rela\u00e7\u00e3o de Pedro com o pai era distante e desajeitada. Ent\u00e3o como Pedro sabia de tantos detalhes \u00edntimos? Ele revela no final, mas n\u00e3o vou dar spoiler<\/em> aqui.<\/p>\n\n\n\n

Pedro empatiza sempre com os personagens; os av\u00f3s, a m\u00e3e, que teve uma inf\u00e2ncia muito dif\u00edcil que moldou sua personalidade; suas namoradas, seus amigos. Ele sempre descreve os sentimentos e as situa\u00e7\u00f5es corriqueiras do dia-a-dia com muita poesia, sempre do ponto de vista dos retratados e revelando segredos \u00edntimos, como faz com o pai. <\/p>\n\n\n\n

Pedro tamb\u00e9m fala da escola p\u00fablica e do sistema educacional do qual Henrique fazia parte. Da desorienta\u00e7\u00e3o dos alunos, da falta de estrutura, da indiferen\u00e7a dos colegas, do sentimento de impot\u00eancia, da desvaloriza\u00e7\u00e3o da profiss\u00e3o. Mas sempre deixando muito claro o racismo que insiste em permear todos os cen\u00e1rios, destinos e relacionamentos, onde a cor da pele \u00e9 sempre muito mais influente do que parece \u00e0 primeira vista.<\/p>\n\n\n\n

Terminei de ler o livro e senti uma vergonha profunda por ter ajudado, mesmo que inconscientemente, a construir esse mundo perverso, injusto e obsceno em que a gente vive. E muito revoltada porque ainda h\u00e1 quem insista em negar a exist\u00eancia desse racismo que mata todos os dias e n\u00e3o tem perspectiva de parar. <\/p>\n\n\n\n

Fico imaginando o pavor que uma m\u00e3e de filho negro sente cada vez que ele sai de casa para ir \u00e0 escola, trabalhar ou mesmo se distrair; ou da esposa de um marido que j\u00e1 se acostumou a ser revistado rotineiramente pela pol\u00edcia s\u00f3 por causa da cor da sua pele.<\/p>\n\n\n\n

Na minha opini\u00e3o, toda pessoa branca devia ler \u201cO avesso da pele\u201d. Seja por obriga\u00e7\u00e3o, seja por forma\u00e7\u00e3o, seja por um m\u00ednimo de civilidade. Para tentar entender um pouco como chegamos at\u00e9 aqui. <\/p>\n\n\n\n

Est\u00e1 mudando sim, mas devagar demais. \u00c9 desolador pensar que ainda ir\u00e3o morrer muitos Mo\u00efses, Durvais e Henriques at\u00e9 que o racismo seja vencido.<\/p>\n\n\n\n

Leia. Por favor.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Resenha do livro “O avesso da pele” de Jeferson Ten\u00f3rio.<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":27024,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_jetpack_newsletter_access":"","_jetpack_dont_email_post_to_subs":false,"_jetpack_newsletter_tier_id":0,"_jetpack_memberships_contains_paywalled_content":false,"footnotes":"","two_page_speed":[],"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false},"categories":[95,23,75,49,99,110],"tags":[],"jetpack_sharing_enabled":true,"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-content\/uploads\/2022\/02\/IMG_7353.jpeg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27023"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=27023"}],"version-history":[{"count":2,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27023\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":27027,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/27023\/revisions\/27027"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/27024"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=27023"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=27023"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=27023"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}