Minha irm\u00e3, a administradora e advogada Andr\u00e9a Ferraz (pensa no orgulho que eu tenho!) ama sapatos. Ama de verdade. Ent\u00e3o, n\u00e3o pude deixar de pensar nela quando vi \u201cWomen form the Ankle Down: the story of shoes and how they define us<\/em><\/strong>\u201d (tradu\u00e7\u00e3o livre: \u201cMulheres do tornozelo para baixo: a hist\u00f3ria dos sapatos e como ele nos definem”<\/em>), de Rachelle Bergstein.<\/p>\n\n\n\n Na verdade comprei esse livro para ela, mas como levo a s\u00e9rio o controle de qualidade dos meus presentes, li primeiro e estou fazendo a resenha para essa linda.<\/p>\n\n\n\n Parece um livro de moda e curiosidades, mas na verdade \u00e9 um livro de hist\u00f3ria do s\u00e9culo XX que usa os sapatos como protagonistas de algumas mudan\u00e7as culturais bem importantes. <\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n Come\u00e7a contando a hist\u00f3ria de Salvatore Ferragamo, que morava em Bonito, It\u00e1lia, um vilarejo com 4500 habitantes. A hist\u00f3ria come\u00e7a em 1907, quando Salvatore tinha 9 anos, o d\u00e9cimo filho de uma fam\u00edlia de 14, e amava passar o tempo com o vizinho Luigi Festa, que fazia sapatos artesanalmente. A fun\u00e7\u00e3o era considerada um trabalho menor e das classes baixas, e mesmo uma fam\u00edlia pobre como a dele n\u00e3o considerava essa ocupa\u00e7\u00e3o digna. <\/p>\n\n\n\n Os sapatos iam passando entre os irm\u00e3os e gra\u00e7as a um incidente com o sapatinho de batizado da mais nova, o menino pode mostrar seu talento. Pedindo material barato para o amigo sapateiro, Salvatore fez um cal\u00e7ado para a irm\u00e3zinha durante a noite, escondido da fam\u00edlia, e salvou a festa. Depois disso, o pai n\u00e3o teve outra escolha: autorizou o menino a frequentar a oficina do vizinho.<\/p>\n\n\n\n Com apenas 11 anos de idade, Salvatore saiu do vilarejo sozinho e foi para N\u00e1poles para aprender seu of\u00edcio trabalhando com sapateiros maiores. Depois de duas semanas de aprendizado e sem receber sal\u00e1rio, achou que j\u00e1 sabia o suficiente para abrir sua pr\u00f3pria oficina em Bonito, sua cidade natal. O neg\u00f3cio foi um sucesso; logo ele conseguiu pagar o empr\u00e9stimo e juntar algumas economias. <\/p>\n\n\n\n O irm\u00e3o mais velho de Salvatore, Affonso, morava em Boston, nos EUA e, numa visita \u00e0 fam\u00edlia, convidou o menino para ir com ele para o Novo Mundo. Nessa \u00e9poca as m\u00e1quinas j\u00e1 estavam come\u00e7ando a fabricar as pe\u00e7as em escala e o rapaz ficou ofendido em pensar em sapatos feios sem interven\u00e7\u00e3o humana. Como assim? Uma arte t\u00e3o nobre feita por essas coisas grosseiras?<\/p>\n\n\n\n Bom, a guerra f\u00ea-lo mudar de ideia e ele foi para os EUA acompanhar todos os outros irm\u00e3os que j\u00e1 estavam l\u00e1 a essa altura, mas com um objetivo: estudar anatomia para n\u00e3o deixar mais que sapatos destru\u00edssem p\u00e9s e colunas das pessoas, em especial das mulheres. E sabe o que mais? Ele tinha uma sapataria em casa que usava como laborat\u00f3rio para seus experimentos. <\/p>\n\n\n\n Em 1923 eis que o mo\u00e7o desembarca em Hollywood, que tinha reduzido os impostos para atrair moradores. A ind\u00fastria do cinema estava nascendo e ele recebeu encomendas para v\u00e1rios filmes. Ele montou uma oficina que combinava arte, podologia e com\u00e9rcio, sem a ajuda das f\u00e1bricas. Ele amava porque podia se divertir e criar os mais diferentes modelos.<\/p>\n\n\n\n Um pouco antes da Grande Depress\u00e3o, Ferragamo fechou seu lucrativo studio em Hollywood porque teve uma ideia brilhante e resolveu arriscar: retornou da It\u00e1lia para aplicar o m\u00e9todo de produ\u00e7\u00e3o em escala das f\u00e1bricas, por\u00e9m, usando pessoas em vez de m\u00e1quinas (ele achava que assim conseguiria manter o controle da qualidade). A ideia era fabric\u00e1-los na It\u00e1lia, que era mais barato, e vend\u00ea-los nos EUA. A segunda guerra veio com for\u00e7a e destruiu seu neg\u00f3cio.<\/p>\n\n\n\n Sem mat\u00e9rias-primas adequadas, ele tentou diversas alternativas at\u00e9 que inventou aquele salto feito de corti\u00e7a: leve e resistente. Carmem Miranda, estrela de Hollywood na \u00e9poca, amou o modelo e encomendou v\u00e1rios. O resto \u00e9 hist\u00f3ria (vai dizer que voc\u00ea nunca teve ou conheceu algu\u00e9m que teve uma sand\u00e1lia com salto de corti\u00e7a?).<\/p>\n\n\n\n Esse \u00e9 s\u00f3 o primeiro cap\u00edtulo (o que trata dessa sand\u00e1lia em particular). Cada um dos pr\u00f3ximos trata de um modelo cl\u00e1ssico e conta seu papel no contexto hist\u00f3rico da \u00e9poca de um jeito muito interessante. <\/p>\n\n\n\n Tem os sapatinhos m\u00e1gicos vermelhos da Doroty, de \u201cO m\u00e1gico de Oz\u201d, criados pelo mesmo Salvatore Ferragamo tem toda uma hist\u00f3ria interessante (inclusive um dos pares originais foi roubado de um museu em 2005 e recuperado pelo FBI 13 anos depois). Esse cap\u00edtulo fala dos sapatos m\u00e1gicos em geral, como os da Cinderela e seu papel no imagin\u00e1rio popular.<\/p>\n\n\n\n Tamb\u00e9m se fala das botas da Mulher Maravilha, que n\u00e3o faziam parte do figurino original, de como durante a Segunda Guerra havia racionamento tamb\u00e9m de sapatos e como foi as pessoas poderem comprar quantos sapatos quisessem (e pudessem) depois do sufoco. <\/p>\n\n\n\n O cap\u00edtulo 4 fala dos sapatos altos de bico redondo e abertos atr\u00e1s (os power pump) usados pelas pin-ups e como essa imagem idealizada prejudicou a autoestima das mulheres. <\/p>\n\n\n\n N\u00e3o poderia faltar o stiletto, que trazia a clara mensagem que a mulher usava esse acess\u00f3rio porque podia, tinha poder, tempo e talento para desenvolver a habilidade de se equilibrar, como contraponto aos lugares tradicionalmente masculinos que estavam come\u00e7ando a ocupar no mercado.<\/p>\n\n\n\n H\u00e1 espa\u00e7o no livro para diferentes tipos de sand\u00e1lias (de tirinhas, de salto, coloridas ou n\u00e3o), as sapatilhas e rasteiras, os t\u00eanis fora do contexto do esporte. <\/p>\n\n\n\n Sobre os t\u00eanis, ali\u00e1s, uma curiosidade: eles se chamam \u201csneakers<\/em>” em ingl\u00eas, porque tendo os solados leves e flex\u00edveis, \u00e9 poss\u00edvel se aproximar sorrateiramente, ou se esgueirar furtivamente ) ou “sneak up<\/em>\u201d. Rachelle conta a hist\u00f3ria desde o maior fabricante, a Keds (lembro que meu pai s\u00f3 chamava t\u00eanis por esse nome), at\u00e9 a ascens\u00e3o da Vans e as demais marcas.<\/p>\n\n\n\n Ainda temos as sand\u00e1lias de plataforma e sua associa\u00e7\u00e3o com a ind\u00fastria porn\u00f4, com a banda Sex Pistols e sua integrante punk mais famosa do mundo, Viviene Westwood; e como elas se tornaram s\u00edmbolo da discoteca. H\u00e1 os sapatos do John Travolta, Bee Gees, sapatos feitos para dan\u00e7ar e brilhar.<\/p>\n\n\n\n Manolo Blahnik n\u00e3o poderia ficar de fora da hist\u00f3ria. Nascido nas Ilhas Can\u00e1rias em um vilarejo rodeado por planta\u00e7\u00f5es de bananas, estudou literatura e arquitetura em Genebra e virou o queridinho de Paloma Picasso e a famosa editora da Vogue Diana Vreeland.<\/p>\n\n\n\n A autora conta como Jane Fonda fez os t\u00eanis de canos altos virarem moda com sua gin\u00e1stica aer\u00f3bica (uma das primeiras influencers de estilo de vida). <\/p>\n\n\n\n Percorrendo todo o s\u00e9culo XX e parte do XXI, tem espa\u00e7o para as botinas, os sapatinhos de boneca com plataforma e bico redondo, os Peep toes (aqueles scarpins abertos atr\u00e1s e no dedo), entre outros.<\/p>\n\n\n\n Gostei muito da maneira como a autora contextualiza cada modelo com o momento hist\u00f3rico, os principais personagens e influenciadores da \u00e9poca, o impacto das decis\u00f5es, os materiais. Enfim, os sapatos s\u00e3o acess\u00f3rios que ajudam a hist\u00f3ria a ser contada. Original, divertido e curioso.<\/p>\n\n\n\n