Semana passada estava passeando num mercado de pulgas aqui em Berlim e encontrei uma edi\u00e7\u00e3o antiga de \u201cThe Wave: the classroom is out of control<\/em><\/strong>\u201d (Tradu\u00e7\u00e3o livre: \u201cA onda: a sala de aula fora do controle<\/em>\u201d), de Morton Rhue (pseud\u00f4nimo de Todd Strasser).<\/p>\n\n\n\n Quando vi o pre\u00e7o (\u20ac 3) e disse que ia levar, o mo\u00e7o perguntou se eu conhecia a hist\u00f3ria. Eu disse que sim e ele ficou um pouco impressionado (devo ter cara de quem n\u00e3o l\u00ea muito, pois o vendedor dos outros livros que comprei em outra barraca fez o mesmo coment\u00e1rio; se eu j\u00e1 conhecia o autor \u2014 ficou surpreso quando eu disse que sim e j\u00e1 tinha lido a trilogia\u2026hahahaha).<\/p>\n\n\n\n Enfim, mas vamos ao que interessa: esse livro ficou muito famoso na d\u00e9cada de 1980, quando foi publicado, e gerou mais de um filme, inclusive o mais recente dispon\u00edvel na Netflix (para variar, n\u00e3o assisti). Pelo que li da sinopse, o filme lan\u00e7ado em 2008 muda os nomes e v\u00e1rias partes da hist\u00f3ria. O que vou contar aqui \u00e9 a hist\u00f3ria do livro em sua vers\u00e3o original.<\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n Todo o alvoro\u00e7o acontece porque o romance juvenil \u00e9 baseado numa hist\u00f3ria real; a narrativa do livro veio de um conto que o pr\u00f3prio protagonista da hist\u00f3ria publicou.<\/p>\n\n\n\n Estamos em 1969 e Ben Ross \u00e9 um professor de hist\u00f3ria do que penso ser o equivalente ao ensino m\u00e9dio no Brasil. Ele d\u00e1 aula numa escola secund\u00e1ria e \u00e9 um dos mais dedicados. A aula de hoje \u00e9 sobre o nazismo; ele passa um filme relatando as trag\u00e9dias do holocausto e todo o terror liderado pelo ditador do bigodinho.<\/p>\n\n\n\n No final da aula, os alunos ficam confusos: como isso pode acontecer e as pessoas simplesmente deixaram? Como n\u00e3o perceberam que ia terminar dando ruim? Uma vez que segundo o professor, os membros do partido Nazista n\u00e3o chegavam a 10% da popula\u00e7\u00e3o, como os outros 90% n\u00e3o fizeram nada para impedir que 10 milh\u00f5es de pessoas fossem exterminadas?<\/p>\n\n\n\n O professor n\u00e3o tinha as respostas, mas foi para casa pensativo e resolveu fazer um experimento com os jovens, a fim de que eles entendessem como esse tipo de coisa acontece.<\/p>\n\n\n\n Na aula seguinte, Ross recebeu os alunos com as palavras \u201cFor\u00e7a atrav\u00e9s da disciplina<\/em><\/strong>\u201d escritas em letras garrafais no quadro. Ele explicou que a disciplina era necess\u00e1ria ao progresso; ent\u00e3o ele iria colocar algumas regras para demonstrar a ideia. <\/p>\n\n\n\n A primeira era que todos se sentassem com determinada postura, com a coluna reta, pernas paralelas e as m\u00e3o sobre a mesa. E que ningu\u00e9m mais na sala falaria uma frase sem que come\u00e7asse com \u201cSr. Ross\u201d. <\/p>\n\n\n\n Em seguida, pediu para que todos se levantassem, caminhassem pela sala e voltassem aos seus lugares quando recebessem um comando. A ideia era que ningu\u00e9m questionasse as instru\u00e7\u00f5es: o treino era para que todos obedecessem automaticamente quando ouvissem a ordem. Ele fez v\u00e1rios exerc\u00edcios de treinamento assim e os alunos acharam at\u00e9 divertido. Quando ele fazia perguntas e o aluno esquecia de come\u00e7ar a frase com \u201cSr. Ross”, levava uma reprimenda. <\/p>\n\n\n\n O pessoal ficou empolgado e na aula seguinte j\u00e1 estavam todos quietos e sentados quando ele chegou; pareciam ansiar por instru\u00e7\u00f5es. Nas aulas seguintes, Ross adicionou o conceito de comunidade <\/strong>no quadro.<\/strong> Ningu\u00e9m era melhor que ningu\u00e9m, todos eram iguais. Por meio da disciplina e da comunidade, tudo ficaria melhor.<\/p>\n\n\n\n E ficou mesmo, pelo menos num primeiro momento. Os alunos que sofriam bullying se sentiram mais seguros e acolhidos; eram inclusive os mais entusiasmados, pois agora faziam parte de algo maior. <\/p>\n\n\n\n Os pr\u00f3ximos passos foi dar um nome ao grupo; Ross chamou de \u201cA onda<\/em>\u201d porque era algo que estava sempre em movimento. Desenhou um logo no quadro e criou uma sauda\u00e7\u00e3o para que os integrantes de \u201cA onda<\/em>\u201d pudessem se reconhecer e se cumprimentar. Ele tamb\u00e9m pediu aos alunos que arregimentassem mais participantes. <\/p>\n\n\n\n Bom, aconteceu o previsto: os mais fracos amaram ter um l\u00edder a quem se devotar. Os mais idealistas acharam que essa era a solu\u00e7\u00e3o para os problemas do mundo. O professor come\u00e7ou a ser tratado como um guia iluminado, acima de tudo e de todos. <\/p>\n\n\n\n S\u00f3 que parte do experimento saiu do controle; os alunos se empolgaram demais com o sentimento de pertencimento, a ponto de criarem regras pr\u00f3prias que o professor nunca pensou. Eles justificavam dizendo que eram instru\u00e7\u00f5es do grande l\u00edder, o professor Ross.<\/p>\n\n\n\n O neg\u00f3cio foi escalando a ponto dos alunos usarem os s\u00edmbolos, o slogan, as sauda\u00e7\u00f5es e a postura militar como demonstra\u00e7\u00e3o de superioridade moral. Os mais empolgados chegaram a bater nos alunos que se recusavam a entrar no movimento (um dos que apanhou, vejam s\u00f3, era um judeu). <\/p>\n\n\n\n A aluna mais inteligente da escola, Laurie, que tamb\u00e9m era editora do jornalzinho, n\u00e3o gostou do que viu desde o come\u00e7o. Publicou o que conseguiu apurar de casos e entrevistas com alunos; alguns pais se revoltaram e o ki-suco come\u00e7ou a ferver. <\/p>\n\n\n\n Os integrantes de \u201cA onda\u201d agora se sentiam superpoderosos e fariam qualquer coisa que seu l\u00edder mandassem; um deles, inclusive, ofereceu-se para ser seu guarda costas e comportava-se como um le\u00e3o de ch\u00e1cara.<\/p>\n\n\n\n O professor foi se dando conta do erro que tinha cometido, mas conseguiu, pelo menos no livro, acordar os alunos a tempo. No final, a maioria deles entendeu como \u00e9 que se cria um regime totalit\u00e1rio baseado na disciplina (e na obedi\u00eancia cega), no sentimento de pertencimento (portanto, quem n\u00e3o concorda \u00e9 exclu\u00eddo e tratado como inferior) e na figura de um l\u00edder absoluto que incentiva (ou pelo menos n\u00e3o co\u00edbe) comportamentos violentos.<\/p>\n\n\n\n A hist\u00f3ria se repete sempre e por isso me d\u00e1 arrepios sempre que vejo algu\u00e9m endeusando a disciplina (que \u00e9 necess\u00e1ria sim, ningu\u00e9m discute, mas extremamente perigosa se aliada \u00e0 obedi\u00eancia cega), um l\u00edder com poderes absolutos e acima de qualquer cr\u00edtica e o sentimento de comunidade que exclui os diferentes. <\/p>\n\n\n\n O escritor Mark Twain dizia que a hist\u00f3ria n\u00e3o se repete, mas ela frequentemente rima. E, c\u00e1 entre n\u00f3s, \u00e0s vezes \u00e9 capaz de versos terr\u00edveis.<\/p>\n\n\n\n Bora estudar hist\u00f3ria sempre para impedir essas \u201condas\u201d.<\/p>\n\n\n\n