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{"id":4456,"date":"2010-02-21T20:41:01","date_gmt":"2010-02-21T23:41:01","guid":{"rendered":"http:\/\/ligiafascioni.com.br\/blog\/?p=4456"},"modified":"2021-03-21T16:18:53","modified_gmt":"2021-03-21T19:18:53","slug":"a-historia-das-listras","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/a-historia-das-listras\/","title":{"rendered":"A hist\u00f3ria das listras"},"content":{"rendered":"

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Uma das coisas que mais me encantam no mercado editorial americano \u00e9 que o volume de publica\u00e7\u00f5es \u00e9 t\u00e3o escandalosamente astron\u00f4mico que d\u00e1 at\u00e9 para um sujeito escrever um livro sobre listras e seu significado ao longo da hist\u00f3ria (sim, listras, aquelas faixas compridas de cores diferentes que estampam um tecido).<\/p>\n

N\u00e3o pude resistir a algo assim (como poderia?) e antes de algu\u00e9m achar que o meu j\u00e1 alt\u00edssimo n\u00edvel de futilidade atingiu o seu extremo, devo dizer que essas informa\u00e7\u00f5es podem ser bastante \u00fateis para quem trabalha com design gr\u00e1fico, artes, ilustra\u00e7\u00f5es ou qualquer \u00e1rea da comunica\u00e7\u00e3o visual.<\/p>\n

O livro se chama “The devil’s cloth: a history of stripes<\/em><\/strong>” e foi escrito pelo historiador de arte franc\u00eas Michel Pastoureau (ele tamb\u00e9m estudou a hist\u00f3ria de v\u00e1rias cores que j\u00e1 est\u00e3o na minha lista — sem trocadilhos).<\/p>\n

A hist\u00f3ria come\u00e7a com o grande esc\u00e2ndalo registrado em 1254 em Paris, quando uma ordem de religiosos carmelitas chegada de Jerusal\u00e9m entrou na cidade usando h\u00e1bitos listrados de branco e marrom. Reza a lenda que as roupas eram assim porque representavam como as vestes brancas do profeta Elias, fundador da ordem, ficaram ap\u00f3s terem passado atrav\u00e9s de chamas. Como ele n\u00e3o morreu, os h\u00e1bitos listrados passaram a simbolizar uma esp\u00e9cie de armadura de prote\u00e7\u00e3o. H\u00e1 varia\u00e7\u00f5es de interpreta\u00e7\u00e3o dependendo do n\u00famero e das cores das faixas (as 4 brancas representavam as virtudes cardinais: retid\u00e3o, justi\u00e7a, prud\u00eancia e temperan\u00e7a; e as 3 marrons, as virtudes teol\u00f3gicas: f\u00e9, esperan\u00e7a, amor).<\/p>\n

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Mas voltando ao esc\u00e2ndalo, os monges foram motivo de chacota e insultados por todo mundo porque na Europa as listras estavam associadas aos pa\u00edses isl\u00e2micos, e, por isso, eram indignas dos crist\u00e3os. O caso era t\u00e3o s\u00e9rio que um cl\u00e9rigo foi condenado \u00e0 morte, em 1310, n\u00e3o apenas porque se casou, mas principalmente por ter sido pego em flagrante usando roupas listradas.<\/p>\n

Mesmo na sociedade leiga havia leis que reservavam as listras para uso exclusivo de bastardos, prostitutas, palha\u00e7os, malabaristas, coxos, bo\u00eamios, hereges e enforcados, enfim, todos aqueles que n\u00e3o podiam ser considerados crist\u00e3os honestos, “gente de bem”. Com o tempo, chegou-se at\u00e9 a ampliar o uso para identificar ocupa\u00e7\u00f5es menos nobres como ferreiros, moleiros, a\u00e7ougueiros e servi\u00e7ais menos qualificados. Na \u00e9poca, nem Judas escapou de ser representado usando seu modelito bicolor nas obras de arte. S\u00e3o Jos\u00e9, inclusive, que nesse tempo carecia de prest\u00edgio (a mulher havia engravidado de Outro), aparece com bastante freq\u00fc\u00eancia usando o padr\u00e3o. A zebra, coitada, era um animal maldito, desnecess\u00e1rio esclarecer os motivos.<\/p>\n

As listras eram associadas ao n\u00e3o puro, n\u00e3o liso, n\u00e3o reto; aquilo que dividia, que mudava (um crist\u00e3o honesto n\u00e3o podia admitir esse tipo de variedade ou diversidade). Para a cultura medieval, duas cores confrontando-se no mesmo tecido representavam o mesmo que dez cores, ou seja, a transgress\u00e3o, a rebeldia.<\/p>\n

A popularidade veio com a her\u00e1ldica, onde os bras\u00f5es se dividiam em cores e, por vezes, inclu\u00edam \u00e1reas flagrantemente listradas. \u00c9 que na idade m\u00e9dia quase todo mundo podia ter seu bras\u00e3o (n\u00e3o somente os nobres, como a gente \u00e0s vezes acredita). A \u00fanica regra era que o desenho fosse in\u00e9dito; para se ter uma id\u00e9ia, 15% da popula\u00e7\u00e3o tinha um escudo para chamar de seu, de maneira que ficou dif\u00edcil evitar as linhas paralelas. Cada tipo de hachura tinha um nome e as varia\u00e7\u00f5es eram infinitas. Os c\u00f3digos das listras n\u00e3o apenas representavam etnias, cl\u00e3s e grupos familiares europeus; as tribos africanas e os povos andinos da Am\u00e9rica do Sul mostram que a pr\u00e1tica era quase universal. Ah, cabe dizer que, para todos os efeitos, o xadrez era considerado um tipo de super-listra.<\/p>\n

Mesmo t\u00e3o populares, cabe dizer que, na Europa, as listras continuaram tendo uma conota\u00e7\u00e3o negativa, sendo mais ou menos pejorativas de acordo com o desenho. Nos bras\u00f5es, elas invariavelmente indicavam cavaleiros traidores, pr\u00edncipes usurpadores, plebeus, bastardos, reis pag\u00e3os, mercen\u00e1rios e toda a sorte da mais fina “elite” da \u00e9poca.<\/p>\n

Aos poucos os significados foram mudando e as listras verticais passaram a ser usadas pela aristocracia; j\u00e1 as horizontais, mais comuns, pelo servi\u00e7ais. As listras viraram moda, ca\u00edram em desuso, voltaram. Nunca chamaram tanto a aten\u00e7\u00e3o como nas revolu\u00e7\u00f5es (elas representavam transgress\u00e3o, lembra?) a ponto de virarem figurinha f\u00e1cil em bandeiras; pelo mesmo motivo, tornaram-se as queridinhas de artistas rebeldes.<\/p>\n

Mesmo assim, as listras m\u00e1s, por assim dizer, nunca desapareceram. Elas, na verdade, caracterizam a coexist\u00eancia de dois sistemas de valores opostos baseados na mesma estrutura.<\/p>\n

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A etimologia da palavra tamb\u00e9m revela muita coisa. Em franc\u00eas, o verbo rayer<\/em> significa fazer listras, mas tamb\u00e9m remover, apagar, eliminar e excluir; em resumo, puni\u00e7\u00e3o. O verbo corriger<\/em> tamb\u00e9m tem o mesmo duplo sentido: fazer listras e corrigir. As “casas de corre\u00e7\u00e3o<\/em>” servem para punir e as janelas s\u00e3o ornadas com barras que parecem listras. Bars<\/em>, ali\u00e1s, podem ser listras ou barras (sem esquecer que sempre se pode “barrar<\/em>” algu\u00e9m indesejado).<\/p>\n

Em ingl\u00eas, a palavra stripe<\/em> pode ser traduzida como listra, mas tamb\u00e9m \u00e9 relacionada ao verbo to strip<\/em>, que pode significar tanto despir como privar, deixar sem, punir.<\/p>\n

Em latim, palavras como stria<\/em> (listra, raia), striga<\/em> (linha, sulco), strigilis<\/em> (raspar, arranhar) pertencem \u00e0 larga fam\u00edlia do verbo stringere<\/em> que, entre outros significados, tamb\u00e9m pode ser traduzido como fechar, tirar e privar; constringere<\/em> significa, literalmente, aprisionar. Em quase todas as l\u00ednguas que se pesquise, listras est\u00e3o sempre associadas \u00e0 exclus\u00e3o, impedimento, puni\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Os medievais acreditavam, inclusive, que al\u00e9m de diferenciar os bons dos maus, as listras tamb\u00e9m serviam como um port\u00e3o, ou filtro, para proteger as pessoas fracas das influ\u00eancias nefastas do dem\u00f4nio. Curioso observar que hoje em dia as listras s\u00e3o usadas predominantemente em pijamas. E em qual situa\u00e7\u00e3o, sen\u00e3o completamente indefesos na nossa cama e em pesadelos, estamos mais vulner\u00e1veis \u00e0 a\u00e7\u00e3o dos esp\u00edritos malignos?<\/p>\n

No in\u00edcio da populariza\u00e7\u00e3o das listras pelos cidad\u00e3os comuns, elas eram usadas apenas nas roupas \u00edntimas. Algu\u00e9m tem um palpite do porqu\u00ea? Ora, essas pe\u00e7as tocam as partes “sujas” do nosso corpo. Sem dizer que as listras eram coloridas por tons pastel, ou seja, cores falhadas, quebradas, mutiladas, desbotadas. Com o tempo, todos os objetos e roupas relacionados \u00e0 higiene (que precisam de “barras de prote\u00e7\u00e3o” contra o mal, no caso, a sujeira) tamb\u00e9m utilizam estruturas bicolores ou multicolores em tons pastel.<\/p>\n

O mundo contempor\u00e2neo \u00e9 muito complexo em termos semi\u00f3ticos e estudar listras \u00e9 um desafio de respeito. H\u00e1 realmente muito que analisar: as listras das pastas de dente; a presen\u00e7a constante nas marcas esportivas, os onipresentes c\u00f3digos de barras, o vai e vem do padr\u00e3o na moda e muito mais (eu fiquei prestando muito mais aten\u00e7\u00e3o nas listras quando acabei de ler o livro).<\/p>\n

Muita coisa mudou, mas o imagin\u00e1rio coletivo continua representando apenas os marinheiros de mais baixo escal\u00e3o com uniforme listrado, os presidi\u00e1rios, o malandro carioca e sua indefect\u00edvel camiseta bicolor e os g\u00e2nsters em seus ternos de risca…<\/p>\n

E voc\u00ea, j\u00e1 se alistou?<\/p>\n

L\u00edgia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br<\/a><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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