<\/p>\n

Ontem reservamos uma mesa no restaurante Unsicht-Bar<\/a><\/em> (o nome \u00e9 um trocadilho, pois unsicht<\/em> significa invis\u00edvel<\/em> e unsichtbar<\/em> significa n\u00e3o visto<\/em>; assim, o nome pode significar tanto bar invis\u00edvel<\/em> como oculto<\/em> ou n\u00e3o visto<\/em>).<\/p>\n

Esse \u00e9 um restaurante onde a gente come completamente no escuro. Mas n\u00e3o \u00e9 penumbra ou aquele escuro de quando a gente fecha os olhos. \u00c9 breu absoluto mesmo; voc\u00ea escancara a pupila e continua vendo tudo preto. Os gar\u00e7ons s\u00e3o cegos e funciona assim: primeiro \u00e9 preciso fazer uma reserva; a\u00ed a gente chega e \u00e9 recebido numa esp\u00e9cie de <\/span>lounge<\/em><\/span> \u00e0 meia luz, onde se escolhe o card\u00e1pio (s\u00e3o sempre 4 pratos: entrada; sopa; prato principal e sobremesa) e as bebidas. <\/span><\/p>\n

O card\u00e1pio s\u00f3 d\u00e1 uma ideia do que se vai comer (se \u00e9 carne, peixe, ave, ovelha ou vegetariano), mas sem muitos detalhes. Depois a gente precisa tirar os rel\u00f3gios e guardar os celulares; nada que tiver brilho ou luz deve entrar na sala de refei\u00e7\u00f5es.<\/span><\/p>\n

Quando chega a nossa vez de ser chamados, vem uma senhora cega e explica que eu devo colocar as m\u00e3os sobre os ombros dela; o Conrado p\u00f5e as dele sobre os meus ombros e a gente vai assim, de trenzinho, at\u00e9 a mesa. Primeiro entramos por um corredor cheio de curvas que vai escurecendo aos poucos, at\u00e9 chegar ao breu total (n\u00e3o precisa se preocupar porque o pessoal do restaurante fala ingl\u00eas, como, de resto, quase todo mundo em Berlim; seu eu tivesse que depender das instru\u00e7\u00f5es em alem\u00e3o teria derrubado tudo…eheheh).<\/span><\/p>\n

A gente chega na mesa e ela nos indica as cadeiras, onde nos sentamos com todo o cuidado e j\u00e1 come\u00e7amos a perceber melhor os cheiros e os sons. \u00c9 estranho, pois a gente n\u00e3o sabe o tamanho da sala e nem a disposi\u00e7\u00e3o dos m\u00f3veis, mas ouve uma babel de pessoas conversando (muitas risadinhas nervosas), som de talheres e cheiro de comida. Tamb\u00e9m rola uma m\u00fasica instrumental bem baixinho.<\/span><\/p>\n

\u00c2ngela nos explica onde est\u00e3o os talheres e as ta\u00e7as (pedimos vinho, que j\u00e1 vem servido). A \u00e1gua fica numa garrafa fechada, com tampa de rosca. A gente deve se servir porque \u00e9 preciso colocar o dedo dentro do copo para saber se est\u00e1 cheio. Tudo \u00e9 feito devagar e com aten\u00e7\u00e3o para n\u00e3o esbarrar em nada. A sensa\u00e7\u00e3o \u00e9 indescrit\u00edvel. Principalmente ao constatar que nos acostumamos muito r\u00e1pido a n\u00e3o ver nada e passamos a tatear sobre a mesa com mais delicadeza.<\/span><\/p>\n

Quando a \u00c2ngela serve nossos pratos, temos que tomar cuidado para deixar as m\u00e3os embaixo da mesa ou sobre o colo. Essas instru\u00e7\u00f5es nos foram dadas no in\u00edcio, junto com outra: toda vez que precisarmos de algo ou tivermos acabado de comer, devemos chamar \u201c\u00c2ngela\u201d que ela vem (n\u00e3o tem aquela de a gente fazer m\u00edmica desesperadamente para o gar\u00e7om e ele ficar olhando para o outro lado…).<\/span><\/p>\n

\u00c0 toda hora, as gar\u00e7onetes (conseguimos identificar duas vozes distintas) s\u00e3o chamadas pelo celular, que n\u00e3o tem nenhuma indica\u00e7\u00e3o luminosa. \u00c9 o aviso para buscar clientes que chegam ou pratos que ficam prontos. A comida vem em cima de um carrinho (pelo menos o barulho \u00e9 esse) para que elas n\u00e3o precisem equilibrar perigosamente bandejas cheias de coisas quebr\u00e1veis e suj\u00e1veis. Quando a gente ouve o som das rodas do carrinho sabe que a \u00c2ngela vem chegando (d\u00e1 para sentir o cheiro da comida quase que instantaneamente).<\/span><\/p>\n

O aroma do vinho \u00e9 inebriante; coisa de louco mesmo. O primeiro prato \u00e9 uma salada; \u00e9 a maior viagem imaginar o que se est\u00e1 comendo pelo cheiro e a consist\u00eancia. Incr\u00edvel como eu nunca tinha me dado conta de que folhas verdes t\u00eam cheiro (pelo menos eu acho que eram verdes….). Na minha salada tinha algo parecido com um queijo cremoso e tomatinhos cereja. Acho que comi umas azeitonas tamb\u00e9m.<\/span><\/p>\n

Depois vem a sopa, e \u00e9 bem dif\u00edcil tom\u00e1-la sem babar tudo. Estava deliciosa. O prato quente veio depois e levei um tempo para descobrir que era dif\u00edcil de cortar a carne porque estava tentando fazer isso usando as costas da faca. A sobremesa foi desafiadora, porque o prato era retangular e tinha divis\u00f5es internas, al\u00e9m de um copinho com alguma coisa que parecia um mousse; \u00e0s vezes \u00e9 preciso enfiar os dedos dentro do prato para se localizar melhor e n\u00e3o tascar a colher na toalha. Por \u00faltimo, o caf\u00e9, o mais cheiroso de tudo.<\/span><\/p>\n

Quando a gente quer ir embora (isso tudo leva umas duas horas, pois \u00e9 preciso comer e desfrutar da experi\u00eancia com bastante calma), \u00e9 s\u00f3 chamar a \u00c2ngela que ela vem encabe\u00e7ar o trenzinho para sair (dessa vez, bem mais dif\u00edcil de organizar, j\u00e1 que estamos no escuro e n\u00e3o queremos derrubar as cadeiras e os objetos com manobras desajeitadas). No final, j\u00e1 no lounge<\/em>, temos \u00e0 nossa disposi\u00e7\u00e3o o menu detalhado s\u00f3 como curiosidade, para ver se acertamos o que est\u00e1vamos comendo.<\/span><\/p>\n

Como aqui s\u00f3 escurece \u00e0s 10 da noite, quando sa\u00edmos ainda era dia. Por momentos, acho que a gente conseguiu sentir o que um cego sente, para o bem e para o mal. D\u00e1 um cansa\u00e7o grande, porque a concentra\u00e7\u00e3o para interpretar ind\u00edcios de sons e cheiros \u00e9 muito maior (adeus piloto autom\u00e1tico). Como um cego, nunca descobriremos a apar\u00eancia daquilo que comemos, o tamanho da sala do restaurante, a disposi\u00e7\u00e3o dos m\u00f3veis, os rostos das pessoas com quem compartilhamos a refei\u00e7\u00e3o e nem o que estavam vestindo. \u00c9 uma sensa\u00e7\u00e3o estranha e grave, curios\u00edssima. O mundo parece diferente depois dessa experi\u00eancia.<\/span><\/p>\n

Imperd\u00edvel, inesquec\u00edvel, insubstitu\u00edvel. Indispens\u00e1vel para aprender a ver. E a comer tamb\u00e9m…<\/span><\/p>\n

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Uma experi\u00eancia inesquec\u00edvel: um jantar \u00e0s cegas!<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":26278,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_jetpack_newsletter_access":"","_jetpack_dont_email_post_to_subs":false,"_jetpack_newsletter_tier_id":0,"_jetpack_memberships_contains_paywalled_content":false,"footnotes":"","two_page_speed":[],"_jetpack_memberships_contains_paid_content":false},"categories":[45,46,59,27,24,25,37],"tags":[],"jetpack_sharing_enabled":true,"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-content\/uploads\/2010\/06\/LigiaFascioni-sol7.jpg","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5723"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=5723"}],"version-history":[{"count":1,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5723\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":26279,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/5723\/revisions\/26279"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media\/26278"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=5723"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=5723"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.ligiafascioni.com.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=5723"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}