A menina e a pipa

Mais um livro dessa linda chamada Laetitia Colombani. Quando vi num sebo “Das Mädchen mit dem Drachen”( Tradução livre: “A menina com a pipa”), não pensei duas vezes.

A Laetitia sempre escreve história de amizade entre mulheres, onde homens são meros figurantes. Ela nunca cai na armadilha fácil do romance açucarado. Seu jeito de narrar a história é simples, linear, sem sobressaltos ou surpresas — tranquilidade para quem quer ler em outro idioma; recomendo demais.

Já resenhei aqui duas obras dela: “A trança” e “As vitoriosas”; ambas lidas em alemão; achei bem acessível.

A história começa com uma mulher, Lena, indo passar as férias numa cidade litorânea da Índia, no Golfo de Bengala. Ela escolheu o destino aleatoriamente, pois está em depressão desde que o amor de sua vida, com quem foi casada por muitos anos, morreu inesperadamente (não entendi muito bem, mas parece que se afogou, ou algo assim — Lena não fala muito dessa parte da vida dela).

Francesa, ela escolhe um hotel com meditação e práticas budistas para ver se melhora, mas a vontade que ela tem é de desistir de tudo. Os primeiros dias são difíceis, ela está sofrendo muito com a perda. Faz caminhadas na praia e sempre vê uma menina de uns 10 anos de idade, brincando com uma pipa na praia.

Num desses dias em que ela está realmente mal, decide entrar no mar e é puxada pela correnteza; está prestes a se afogar, mas nem reage muito porque pensa em acabar logo com a agonia que se tornou a sua vida sem sentido. Mas acorda num hospital e fica sabendo que a menina da pipa a viu, chamou por ajuda, e Lena foi salva por um grupo de garotas que formam uma brigada de defesa.

Preeti é a capitã da chamada Brigada Vermelha e dá aula de defesa pessoal para o grupo, criado por causa do alto índice de estupros e violência contra meninas e mulheres indianas, especialmente as da casta Dalit, a mais baixa. As pessoas dessa casta não podem ser tocadas por outras de casta superior sob pena de se “sujarem”. Se mal são considerados seres humanos, imagine se a polícia ou o Estado vão defender as meninas em caso de ataque?

Preeti tem 18 anos, é corajosa e está sempre na defensiva; saiu de casa cedo, pois o “normal” é que uma menina como ela se case aos 12 anos com um adulto escolhido pelos pais — depois disso, ela vai se tornar escrava da família do marido e vai passar a vida sendo estuprada e tendo filhos que reproduzirão esse panorama de horror perpetuado e protegido pela tradição, pela religião e pela ignorância.

Preeti perdeu a irmã um pouquinho mais velha que ela, quando faleceu no parto, aos 13 anos de idade. Imagine! Então se rebelou e resolveu fugir de casa. Ninguém a respeitava, até que ela conheceu a fundadora da Brigada Vermelha e resolveu fundar seu próprio grupo, vivendo de doações. Lena vai atrás dela para agradecer e tenta fazer amizade; Preeti fala mal inglês, mas aos poucos conseguem se comunicar.

Lena também procura a menina da pipa quando fica sabendo que foi ela a verdadeira responsável pelo seu salvamento, e descobre que a pequena trabalha num restaurante perto da praia.

A mãe veio com ela para a cidade, na tentativa de lhe dar uma vida melhor, mas acabou morrendo na casa de seu irmão. Então os tios a acolheram porque precisavam de ajuda no restaurante e a criança poderia trabalhar em troca de comida. 

Os tios também vivem uma vida miserável e se converteram ao cristianismo (mudaram até o nome da menina Lalita para Holy) a fim de escapar da maldição das castas, porém, sem muito sucesso. Lena tentou se comunicar com eles e com a menina, mas ninguém falava inglês e todos eram analfabetos, mesmo na língua materna.

Lena começa a se encontrar com a menina quase todos os dias na praia e tem a ideia de lhe ensinar algumas letras desenhando na areia mesmo. Lalita fica fascinada e curiosa; quer muito aprender mais.

Foi então que o visto de Lena venceu e ela teve que voltar para Paris. Lá, ela percebe que todo o seu sofrimento tinha voltado — e que ela tinha encontrado um propósito na Índia, percebendo que poderia mudar a vida das meninas que conheceu, já que ela passou toda a sua carreira profissional como professora.

Pois Lena volta, e com a ajuda de amigos franceses que fazem doações, resolve fundar uma escola na oficina abandonada e ocupada por Preeti, onde já funciona o treinamento da brigada. A resistência dos moradores locais é enorme, pois eles não conseguem ver serventia em aprender a ler e a escrever, além de também aprender inglês, mesmo que de graça, pois as crianças todas precisam trabalhar para ajudar as famílias.

Mesmo os tios de Lalita dizem que a escola atrapalharia o trabalho dela; que agora a menina só quer saber dos cadernos e isso não está fazendo bem para os negócios.

Nossa, eu fico pessoalmente mexida com relatos assim, pois estudar é a coisa mais importante da minha vida. Eu vivo para isso. Imagina se eu tivesse nascido e crescido nesse lugar? Imagino que tenha sido o que a Lena pensou, pois ela foi até a casa dos tios de Lalita e ofereceu dinheiro para eles contratarem outra pessoa para fazer o trabalho dela e deixá-la livre para ir à escola.

Além disso, ela teve que oferecer comida, não apenas para as crianças, mas também uma contribuição para os pais. Mesmo assim, as faltas eram muitas.

O ponto mais doloroso da história é quando a melhor amiga de Lalita faz 12 anos e o casamento é marcado. Bom, não vou dar spoiler, mas esse é o tom da história.

Eu imagino que a autora tenha visitado a Índia muitas vezes, porque de alguma maneira o país e a cultura aparecem com frequência nas histórias dela. Mas o mais bonito é entender que uma mulher sozinha não pode mudar o mundo, mas, como a ajuda de outras, pode mudar o destino de muitas delas. 

E que a colaboração e a amizade feminina são a única forma de defender tantas meninas que não têm a opção de lutar pelo próprio destino.

Como eu disse: nada surpreendente e nem sensacional; mas delicado, sensível e muito forte. Recomendo demais.

E olha só que coisa mais maravilhosa: tem a versão em português; é só clicar nesse link para pedir o seu na Amazon do Brasil.

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