"d" minúsculo com muito orgulho (e coerência)…

Sábado, dia 6 de junho, vai ser aberta a 13a edição da dOCUMENTA, talvez a mais importante exposição de arte contemporânea do mundo. O evento acontece a cada 5 anos na cidade alemã de Kassel, a mais ou menos 400 km de Berlin.

Bom, mesmo com meu orçamento de estudante-sem-bolsa, vou ter que dar um jeito de ir. Como perder um acontecimento assim?

A exposição dura exatos 100 dias e movimenta artistas, colecionadores, curadores, críticos e todo o povo que faz e acontece na cena das artes ao redor do globo.

Pois essa semana saiu no The New York Times um artigo maravilhoso da jornalista especializada em design Alice Rawsthorn que é uma verdadeira aula de tipografia. Achei tão sensacional que vou compartilhar aqui um pouquinho das ideias dela com vocês.

Alice explica que, nessa edição, os organizadores optaram usar como logotipo a palavra dOCUMENTA escrita normalmente; a única particularidade é que ela está toda em caixa-alta, exceto pelo “d” inicial. A decisão é bastante incomum, a julgar pela assiduidade de marcas multisensoriais, complexas e cheias de movimento nos grandes eventos internacionais ; ainda mais numa exposição como essa, intrinsecamente ligada à criatividade.

Quem opta por usar apenas um logotipo sem o símbolo anexado, não raro apela sem dó para truques tipográficos com o objetivo declarado de chamar atenção. Rawsthorn comenta que normalmente não é muito chegada nessas “inovações” (grifo meu) que dificultam a leitura, como o Ford Th!nk e o I MiEV, da Mitsubishi; se essas marcas são distintivas e memoráveis, não o são pelas razões certas, mas pelo seu poder de irritação quando a pessoa tenta pronunciá-las ou escrevê-las (concordo plenamente com ela, acho que a brincadeirinha já datou e perdeu a graça). Por isso é que a moça ficou tão intrigada com a grafia da dOCUMENTA.

Mas a Alice, com cultura e conhecimento de sobra, conseguiu matar a charada; tem a ver com a moderna cultura alemã, acompanhem o raciocínio.

A dOCUMENTA aconteceu pela primeira vez em 1955, quando o artista e professor Arnold Bode resolveu organizar a mostra na sua cidade natal como uma forma de contribuir para a reparação dos danos causados pela Segunda Guerra Mundial. A ideia era promover empatia e entendimento entre diferentes nações, e o sucesso foi tão grande que a exposição tornou-se um evento mundialmente reconhecido e ansiosamente aguardado nas décadas seguintes.

Cada edição tem sua própria identidade visual, a maioria explorando variações tipográficas, geralmente em letras minúsculas, herança da conterrânea Bahaus. Aliás, esse amor pelas letras minúsculas veio do carismático artista e designer húngaro Laszlo Moholy-Nagy, que começou a dar aulas na lendária escola em 1923. Laszlo era conhecido por encorajar os estudantes a fazer experimentações e inspirou muita gente boa na época (na verdade, inspira até hoje).

As iniciais maiúsculas nos títulos e textos estavam muito associadas ao poder, à disciplina extrema e ao autoritarismo alemão. Quando o artista e professor Joseph Albers propôs usar apenas letras minúsculas, estava subvertendo o sistema e demonstrando uma certa liberdade de pensamento. A  partir de 1920 a Bauhaus praticamente aboliu a caixa-alta de todas as suas publicações, catálogos, convites para festas e performances (ironicamente, o letreiro da escola na cidade de Dessau é todo em maiúsculas, como se pode ver aqui).

Para o alemão, essa insubordinação tem um significado adicional ainda mais forte, pois nesse idioma todos os substantivos (não apenas os nomes próprios) são grafados normalmente com iniciais maiúsculas.

O espírito libertário, descomplicado e livre de hierarquia advindo do uso exclusivo de minúsculas passou a ter também um forte apelo vanguardista e foi abraçado com gosto pelo mundo do design, como se pode observar até hoje, tanto nos logotipos de pequenas empresas como os de grandes corporações. Se você observar bem, o negócio virou modinha, tem em todo lugar.

Mas a coisa desandou mesmo foi na década de 1990, com a popularização da internet; escrever tudo em caixa-baixa era mais rápido e prático, e proliferou de tal maneira que se tornou um clichê corporativo, totalmente adaptado ao “sistema” e sem nenhum traço da rebeldia que lhe deu origem. A julgar pelos logotipos totalmente desconectados do conceito inicial, boa parte dos designers sequer faz ideia do simbolismo dessa prática. Ou como explicar que grandes corporações, totalmente adaptadas e dominantes no atual sistema hierárquico e de poder se utilizem de um recurso que representa o seu avesso?

Por conta desse histórico, o comitê da dOCUMENTA resolveu fazer exatamente o contrário. Sim, a hierarquia das letras está de volta, mas agora novamente com um traço de rebeldia. A tal ponto que o manual de identidade visual permite o uso de qualquer fonte tipográfica, até mesmo as manuscritas, desde que respeitada a capitalização, a inserção do (13) no final e que as letras sejam impressas em preto.

Como resultado, a identidade visual do evento pode ser reconhecida em qualquer lugar, independente da aplicação e da fonte.

Gênio, gênio, gênio.

Tenho que limpar a baba logo, pois preciso de reservas para visitar a exposição. Me aguardem…

***

Para ler o artigo original “A symbol is born“, de Alice Rawsthorn, basta clicar aqui.

5 Responses

  1. 6 junho 2012 at 2:51 pm

    Bom saber que ainda tem genialidade pouca dentro da mediocridade muita. Faço minhas as suas palavras: gênio, gênio, gênio! Uma marca tão desatrelada das regras (na verdade, tem uma só regra) e tão forte. Isso é para poucos. Pouquíssimos!

  2. 6 junho 2012 at 7:42 pm

    Muito interessante, mas a Apple já faz isso com seu iPhone e família.

    • ligiafascioni
      Responder
      7 junho 2012 at 2:40 am

      É diferente, João. No caso da Apple, eles apenas colocam o “i” minúsculo no início dos nomes dos produtos, mas a capitalização normal continua valendo na palavra que vem a seguir. É bacana também, mas o conceito é diferente do utilizado na dOCUMENTA.
      Abraços 🙂

  3. Fernando
    Responder
    8 abril 2015 at 8:32 am

    Ligia, como você vê essa onda de as empresas (mesmo as grandes) redesenharem suas logos em caixa baixa? A alegação é de que caixa alta (a exemplo do que ocorre nas redes sociais) é como se estivessem gritando o nome da empresa. Você também acha que o tempo da caixa alta passou, mesmo quando ela tenha um significado importante na representação da marca?

  4. ligiafascioni
    Responder
    8 abril 2015 at 4:00 pm

    Olá, Fernando!
    Penso que a grafia do nome da empresa, aliás, como todas as fontes que ela utiliza, devem traduzir sua identidade, ou seja, seus atributos essenciais. Se houver justificativa para o uso de caixa alta, por que não? O que não dá é para escolher a fonte e a capitalização com base em tendências ou modismos, uma vez que cada identidade é única.
    Abraços 🙂

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