Fahrenheit 451

Fotografia: Tony Hutchings

No final da adolescência, nos anos 1980, lembro que fiquei muito impressionada com as obras chamadas distópicas (o termo foi cunhado em oposição a utopia, que quer dizer literalmente não-lugar, ou um mundo idealizado, tão perfeito que não existe). Na distopia, os mundos criados também não existem, mas ao contrário de maravilhosos, eles são versões variadas de infernos totalitaristas.

Foi nessa época que fiquei fascinada com “Admirável mundo novo” (Aldous Huxley), “A revolução dos bichos” (George Orwell) e o formidável “1984“, do mesmo autor. Aliás, é nesse último livro que foi cunhada a expressão Big Brother (na história, todas as pessoas eram monitoradas pelo governo por meio de uma TV que tinham em casa; assim, ninguém podia fazer nada escondido nem mesmo na intimidade; o Grande Irmão, ou The Big Brother, era o governo totalitário que controlava tudo). Assim, não consigo entender como é que um jornalista como Pedro Bial, que certamente leu 1984, chama os participantes do programa de Brothers. Quem deveria se chamar BB, por uma questão de coerência, são as pessoas que estão do lado de fora, monitorando os que estão dentro da casa. Uma contradição, como, de resto, o próprio apresentador.

Pois depois de tanto tempo me caiu nas mãos uma outra obra distópica da mesma época que ainda não tinha lido: Fahrenheit 451 (Ray Bradbury). Já tinha ouvido falar e até conhecia a história, mas acabei deixando pra lá e esquecendo.

Fiquei atraída novamente pelo tema quando vim a Berlin em 2010 só para visitar (nem sonhava em morar aqui ainda) e pude conhecer o memorial do artista judeu Micha Ullman na Bebel Platz. Eu já explico o que uma coisa tem a ver com a outra. É que foi nessa praça, em frente à Universidade Humboldt, que em 10 de março de 1933, os nazistas promoveram uma fogueira enorme para queimar mais de 20 mil livros que contradiziam o regime. Na minha infinita ignorância, achava que esse tipo de coisa só tinha acontecido na idade média, muito apropriadamente denominada Idade das Trevas. E não vou enganar ninguém, fiquei bem chocada ao saber de um ato desses em pleno século XX.

Fahrenheit 451, assim como boa parte dos livros sobre distopia, foram escritos depois do fim da segunda guerra e no início da guerra fria, quando o fantasma do totalitarismo assombrava os intelectuais. Com certeza Bradbury ficou tão ou mais chocado que eu com o episódio da Bebel Platz.

O livro conta a história de um bombeiro, Guy Montag, em algum lugar do futuro, cujo trabalho, vejam só, era queimar livros. Fahenheit 451 é a temperatura com que os livros são carbonizados e viram cinzas (mais ou menos 233 ºC). Nessa época fictícia, as construções eram todas à prova de fogo; então, o trabalho dos bombeiros era colocar fogo nas casas onde as pessoas teimavam em manter livros.

A posse e leitura de livros era proibidíssima e a coisa não aconteceu do dia para a noite. Na história, as pessoas ficaram mais imediatistas e sem paciência para ler por causa da popularização da televisão. O governo percebeu a chance e começou a promover cada vez mais a diversão, as mágicas, piadas e até, imaginem, algumas formas de reality show (que obviamente ainda não tinham esse nome). O povo tinha TVs enormes do tamanho da parede e interagia com parentes, conhecidos e desconhecidos (mais ou menos como nas redes sociais atuais); a galera ocupava praticamente todo o seu tempo livre conversando sobre nada e sendo “feliz”.

As pessoas que gostavam de estudar sofriam bullying nas escolas (o termo ainda não existia) e alguns acabaram se matando ou sendo mortos. De qualquer maneira, quem gostava de ler foi se tornando uma minoria incômoda que conseguia ver além do espetáculo hipnotizador das telinhas; por isso questionava, duvidava e reclamava. De fato, isso provava a tese de que os livros tinham que ser proibidos e queimados pelo bem da felicidade geral da nação: eles traziam dúvidas, se contradiziam, tornavam as pessoas inconvenientes, infelizes e descrentes. Quem não lia sempre parecia mais feliz; já os leitores ávidos eram melancólicos e, de certa forma, até um pouco pessimistas. Bom, dá para ver que ficou muito fácil convencer todo mundo que livro fazia mal (adoro uma frase de Montag em que ele fala: “Ó, Deus, a terrível tirania da maioria“).

Quando a história começa, o protagonista sente um desconforto e entra numa crise existencial grave. Ele não só quer parar de queimar livros, como, na verdade, deseja desesperadamente lê-los para ver se ajudam a acalmar o vazio que se tornou sua vida.

O autor consegue reproduzir situações futuras com bastante fidelidade (pelo menos, eu achei) e sinto calafrios quando vejo um político (em última instância, um representante do povo) ou uma celebridade qualquer anunciar com orgulho que não lê livros e que eles nunca fizeram falta (sempre enaltecendo a tal da famosa “escola da vida“, como se ela fosse mutuamente exclusiva com a leitura).

Dá um certo medo, não vou negar. Dando uma geral nas redes sociais essa semana chega até a arrepiar. Acho que mais gente devia ler Fahrenheit 451. Mesmo que só por precaução…

7 Responses

  1. 26 dezembro 2011 at 2:25 pm

    Olá Lígia, muito legal a sua postagem, ainda mais quando retrata a situação atual das massas…
    Neste momento planetário, onde estamos observando acontecimentos que nos fazem sentir, vergonha de sermos chamados de seres humanos… Eu me perguntava – o que posso fazer?
    E o que descobri, é que posso mudar a visão do mundo, melhorando a minha vibração, seja fazendo yoga, leitura de livros, mas principalmente praticando o poder do Agora.
    O livro do Eckhart Tolle – O Poder do Agora, nos ajuda a entender o que é que cada um pode e deve fazer… Grande abraço à você e ao Conrado

    • ligiafascioni
      Responder
      26 dezembro 2011 at 4:02 pm

      Obrigada pela dica, Vera! Um ano novo cheio de bons livros e boas energias para você!

  2. Gustavo
    Responder
    7 junho 2012 at 4:32 am

    confesso que não curto muito quando vc fica divulgando postagens antigas no twitter Lígia, de meses atrás. Mas essa aqui não havia lido ainda e gostei muito!

    Este autor parece que tinha bola de cristal! hehe

    Livros são bem mais profundos que tv, internet, etc. Adoro.

    • Gustavo
      Responder
      7 junho 2012 at 4:35 am

      opa, esqueci de dizer o porquê de não gostar… vejo apenas a “chamada” com um titulo que utiliza de uma técnica perspicaz p/ atrair o leitor, mas quando abro o link e vejo que já havia lido o texto, vem uma certa incomodação…só isso.

      Eu particularmente prefiro muitos textos novos, continue nos agraciando com sua visão e interpretação da vida aí na Alemanha. ;]

      • ligiafascioni
        7 junho 2012 at 3:01 pm

        Oi, Gustavo!
        Entendo sua frustração, mas não consigo dar conta de produzir (principalmente sem remuneração) a quantidade de posts que preciso para me manter presente todo dia nas redes sociais. Essa é uma técnica muito utilizada inclusive por blogueiros profissionais; concordo que há desvantagens, mas como todo dia ganho alguns seguidores novos e tem muita coisa nesse blog (ele existe desde 2007), achei que valia a pena. Pelo número de retweets e comentários, parece que tem bastante gente lendo esses textos pela primeira vez. Então, desculpa aí, mas vou continuar fazendo isso….eheheheheh (quem manda ser leitor antigo? Eeheheheh…).
        Abraços!

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