África não é um país

Eu me lembro de ter visto a capa desse livro em vários lugares e ter ouvido recomendações de amigas, mas não me lembro de nada específico sobre ele. Então, quando a Amazon me sugeriu, logo aceitei. Afinal, como recusar um livro com um nome tão provocativo? 

Africa is not a country: breaking stereotypes of modern Africa” (tradução livre: “África não é um país: quebrando estereótipos da África moderna”), de Dipo Faloyin, deveria ser mesmo parte do currículo de todas as escolas, como diz um comentário na capa.

Aliás, eu me perguntei muitas vezes ao longo da leitura porque a gente não estuda absolutamente nada sobre a África na escola, com exceção de alguma coisa sobre o Egito. E quando ela aparece, é mesmo como se fosse um país só, povoado com animais selvagens e crianças famintas.

Apesar de já desconfiar da resposta, aqui ela está desenhada para que até uma galinha com deficiência cognitiva conseguir entender. Tão óbvio que chega a doer. Mas vamos lá!

Dipo Faloyin é um jornalista nascido em Chicago, criado na Nigéria e que agora mora em Londres. Ele é debochado e muito inteligente; sabe aquelas pessoas sarcásticas que sabem construir frases sutilmente reveladoras? Não me admira ter tanto sucesso com suas colunas em vários jornais e revistas internacionais. 

Dipo começa o livro deixando muito claro: a África é um continente com 54 países, mais de 2 mil idiomas e 1.4 bilhões de pessoas. A imagem que o mundo tem é que esse lugar enorme tem dois cenários: paisagens exuberantes ao por do sol, com safáris fotográficos por um lado — guerras infinitas, pobreza e AIDs no outro. Nada no meio. Uma coisa ou outra.

O autor deixa muito claro desde o início: ele não fala em nome de todos os africanos; ele fala como um nigeriano, pois isso é o que ele é. O Brasil não pode falar em nome da Bolívia só porque estão no mesmo continente.

Faloyin, como eu disse, é muito debochado: ele diz que somos obrigados pela educação de chamar aqueles homens brancos de calça cáqui de “exploradores” (isso, surpreendentemente, é um elogio no mundo ocidental — será que as pessoas nunca pararam para pensar no significado dessa palavra?).

Aí ele começa a contar como tudo começou, quando eles estavam de boas no continente e foram “descobertos” pelos europeus (os tais homens brancos de cáqui).

O MAPA E O JOGO

Segundo a história oficial (e há documentos que provam isso), em 15 de novembro de 1884, na residência oficial do então chanceler Otto von Bismark, 14 nações se reuniram para — pasme — repartir a África entre elas. Isso mesmo que você leu.

Exatamente como se fosse um joguinho: pegaram um mapa bem meia boca (o território não era muito conhecido e não havia muita fidelidade na representação geográfica) e simplesmente começaram a riscar com uma caneta azul quem ficaria com cada parte.

O objetivo da negociação era evitar guerras entre eles. Se todos já fossem para o saque tendo combinado qual parte era “direito”de quem, não haveria surpresas desagradáveis na hora de dividir o espólio. Anote aí os jogadores: Inglaterra, França, Portugal, Holanda, Dinamarca, Espanha, Itália, Bélgica, Império Astro-Húngaro, Rússia, Suécia-Noruega, Império Otomano, Estados Unidos e Alemanha.

Bismark teve a iniciativa de chamar a reunião para garantir que a Alemanha não ficasse pra trás na partilha, e esse povo ficou três meses para chegar a um acordo que contentasse a todos. Obviamente nenhum representante africano foi convidado.

Até então, o continente era casa de enormes impérios antigos e algumas comunidades nômades, com cidades e povoados entre outras variações de agrupamentos populacionais.

Os europeus evitavam se aventurar pelo interior por causa  do calor e da secura; os que sobreviviam a essas condições inóspitas, morriam de malária e outras doenças tropicais. Então eles só passavam por essas regiões para recolher alguns homens e transportá-lo para o trabalho escravo em plantações em troca de açúcar ou o que mais pudesse ser obtido proporcionalmente ao peso da pessoa capturada. A questão é que por ocasião da tal reunião, a medicina já estava suficientemente desenvolvida para que a África perdesse sua defesa natural nessa região.

Bismark começa a conferência lembrando a todos que eles eram boas pessoas com nobres objetivos e iriam levar os três C para esses selvagens: Comércio, Cristianismo e Civilização.

O argumento é que eles levariam desenvolvimento econômico para as pessoas da região e que os benefícios que receberiam em troca, com os produtos, seria uma consequência natural. Infelizmente não há registro de que alguém tenha vomitado ao ouvir essas palavras tão puras, sinceras e cristãs.

 Já naquela época existia (ou estava nascendo) o conceito de direito internacional e a incômoda pergunta que o representante dos Estados Unidos fez foi: gente, não é por nada não, mas isso não é contra a lei?

Bismark desconversou; eles não iriam prejudicar ninguém — levariam armas, claro, mas também sorrisos e a Bíblia. Como isso poderia ser errado?

Então debruçaram-se sobre questões menos filosóficas e mais práticas, como as regras de ocupação. Para colonizar uma área, o país deveria cumprir duas exigências:

1) informar aos outros países da conferência o território que estava sendo reclamado e

2) enviar provas de ocupação, demonstrando poder de governo.

E foi isso. O documento da Conferência de Berlim estabeleceu o fim do direito de auto-determinação de um continente inteiro. Pense.

O único país que declinou e saiu da conferência sem nada foram os Estados Unidos. Eles acharam o crime descarado demais e preferiram não fazer parte. De resto, os métodos de ocupação foram de assassinatos de líderes tribais, estupros em massa, mutilação, tortura e todo tipo de horror possível e imaginável.

UM REI ENTEDIADO

Eu já tinha ouvido falar nos horrores promovidos pelo Rei Leopoldo II da Bélgica, mas essa descrição aqui está de revirar o estômago.

Eis que na época da Conferência de Berlim, ninguém sabia muito sobre o continente africano, então nenhum dos participantes se opôs quando Leopoldo pediu um pedaço lá no meio (que ninguém se interessou muito, pois era longe do mar e parecia deserto).

Acontece que Leopoldo já tinha, uma década antes, contratado um explorador britânico-americano chamado Henry Stanley para pesquisar riquezas naturais ao longo rio Congo; o sujeito encontrou grandes reservas de borracha e marfim (leia-se: elefantes vivos). Stanley logo forçou os locais a assinar tratados que eles não entendiam em troca de presentinhos sem valor (já ouvimos essa história antes, não?).

Só que o governo da Bélgica não queria essa colônia (não achou  interessante; os investimentos para exploração eram altos). Então, pasme, nada menos que uma área 5 vezes maior que o tamanho da Bélgica e com uma população, na época, de 25 milhões de pessoas, passou a ser propriedade privada do Leopoldo. 

Eis que Leopoldo resolveu juntar num país só, tribos com culturas, idiomas e modos de vida totalmente diferentes, que ele chamou de República Democrática do Congo (além de sonso e imoral, esse rei também parecia muito debochado).

No começo, o negócio deu prejuízo e os resultados demoraram um pouco. Não querendo se envolver com questões administrativas, o rei terceirizou a exploração de borracha para empresas que escravizavam os nativos. Qualquer um que se recusasse a trabalhar ou entregasse menos que a sua cota diária era imediatamente assassinado (e as provas da morte tinham que ser enviadas ao rei, para a patrulha mostrar que não estava desperdiçando balas). 

Nos 20 anos que se seguiram, estima-se que 10 milhões de pessoas morreram em condições deploráveis (só para você ter uma ideia, no holocausto judeu foram estimados 6 milhões de vítimas).

O horror foi tamanho que a pressão internacional forçou a Bélgica a retirar o país das mãos de Leopoldo em 1908, mas o Congo só conseguiu sua independência em 1960.

O rei entediado morreu sem nunca ter ido à África.

TERRA PARA TODOS

Os outros países participantes da Conferência de Berlim tentaram pegar o máximo de terras possível, mas Inglaterra e França foram os mais gulosos e criaram países aleatoriamente, apenas desenhando as fronteiras nos mapas, sem considerar diferenças de cultura, etnia ou qualquer outra.

A França ficou com o que hoje conhecemos por Guiné, Costa do Marfim, Mali, Burkina Faso, Níger, Senegal e Benin (ela já tinha dominado a Algeria e parte da Tunísia). Depois garfou o Marrocos e a Mauritania.

A Inglaterra arrematou Gambia, Nigéria, Ghana a Serra Leoa, mas usou outros métodos mais lucrativos, dada a sua vasta experiência no negócio de colonização: ela simplesmente arrendava as áreas para empresas de depois as comprava de volta. Anos depois também incluiu entre seus domínios o Lago Vitoria, Quênia, Uganda e parte da Tanzânia e Malawi.

Para isso, foi fundada a United African Company (1879), mudando de nome depois para Royal Niger Company. E agora, um plot twist que eu não imaginava: em 1930, essa mesma empresa mudou de nome para sabe qual? Unilever. Essa mesma que você está pensando.

Portugal também pegou seus snacks: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde. Holandeses dominaram a África do Sul.

A Alemanha, depois de ter perdido Camarões, Togo e Tanzânia na primeira Guerra, não teve energia para se dedicar ao esporte, mas por meio de um acordo com a Inglaterra, também teve seus mimos: Burundi e Ruanda. A Itália conseguiu um pedaço do que hoje é a Líbia.

Quando a corte internacional viu a bagunça que se formou e tentou organizar, o caos aumentou ainda mais, pois nenhum povo com legitimidade histórica e cultural conseguiu reclamar uma terra para chamar de sua, uma vez que agora estavam todos misturados por fronteiras desenhadas arbitrariamente cuja divisão eles não foram chamados para participar.

O resultado é que menos de 30% das fronteiras estão na África, mas 60% de todas as disputas territoriais na Corte de Justiça Internacional vêm desse continente. Mais da metade dos países está envolvido alguma disputa sobre o formato ou fronteiras exatas do seu território. Isso que nem vamos considerar que boa parte da cultura de algumas regiões era nômade, para quem esses conceitos sequer faziam sentido, já que fronteiras aleatoriamente desenhadas em um mapa são invisíveis a olho nu.

Num local onde esses limites foram negociados com auto-intitulados líderes que sequer eram fluentes nos idiomas locais, onde caso a negociação não agradasse aos colonizadores, bastava chamar seus exércitos para acabar com a teimosia, não surpreende que essa parte do planeta tenha ficado aos pedaços, depois de décadas de exploração intensiva de petróleo, borracha, pedras preciosas, marfim, e mais tudo o que pudesse ser saqueado para construir a riqueza dessas potências mundiais.

E AGORA?

Depois de conseguirem pouco a pouco sua independência, os países ficaram com um belíssimo abacaxi para descascar: famílias foram separadas, doenças novas chegaram, idiomas desapareceram com seus grupos étnicos, tribos ancestrais foram separadas em partes de países diferentes, enfim, o caos. Como reconstruir o continente devastado pelo saque sistemático dos brancos? Recomeçar do zero, refazendo todas as fronteiras? Dar um jeito e se virar com o que tem?

A resposta nunca é simples. Refazer do zero é também ignorar as mudanças que aconteceram nessas décadas. Os grupos se reorganizaram, alguns não existem mais, muita gente ficou sem casa, sem terra, sem família, sem nada.

A divisão não foi um acaso; dividir para conquistar é uma estratégia velha, conhecida por sua eficiência e largamente usada até hoje pelos grupos dominantes no planeta. Quem tem poder financia as guerras de grupos que interessam, para, no final, o objetivo ser sempre o mesmo: mais dinheiro e mais poder.

O MITO DO BRANCO SALVADOR

E aí começam as narrativas de crianças famintas que as organizações europeias ajudam a salvar. Certamente você já viu uma foto de uma tribo inteira de pessoas negras e vem um branco e os salva da miséria, ou os resgata de uma guerra. Como se eles não tivessem capacidade de se salvar por conta própria. Como se o único caminho para que saiam da pobreza e da condição desumana é com a ajuda da “civilização”.

Percebe como é cruel? Você vai lá, rouba tudo, leva discórdia, deixa todo mundo morto de fome, brigando uns contra os outros e, depois que o negócio está bem estragado, você reaparece como “salvador”. Seria um deboche, se tantos brancos não acreditassem realmente nesse papel.

O autor mostra inúmeros exemplos: documentários, projetos, organizações não governamentais, caridade, organizações religiosas, todos unidos para levar ajuda. Sempre tem um branco fazendo uma selfie, postando stories e mostrando sua generosidade.

Não entenda mal, não é que a pessoa não quer ajuda. É que ajuda é diferente de esmola. É necessário que os cidadãos continuem a ter dignidade, livre arbítrio, respeito pela sua capacidade de escolha. Que não sejam tratados como os “pobrezinhos” da África como se isso tivesse acontecido por alguma falha ou incompetência deles, como se fossem menos inteligentes ou capazes. 

Como fazer então para ajudar sem fazer o papel ridículo de “branco salvador”?

O autor dá uma dica: se você fosse ajudar moradores de rua em Londres, você tiraria uma sua foto entregando um prato de comida para uma mulher grávida? Você posaria ao lado de pessoas dormindo no chão? Você pegaria o mais sujo e miserável deles para sentar ao lado com um sorriso magnâmico? Não, né? Então por que fazer isso num país africano? Já pensou que essas pessoas têm a dignidade delas e que você também não gostaria de ser fotografado nessa situação?

E MAIS

O autor ainda fala sobre o porque as ditaduras no continente são tão presentes. Teria algo a ver com os impérios e seus interesses econômicos em apoiar quem facilita os negócios? Leia o capítulo sugestivamente chamado de “A história da democracia em sete ditaduras” e tire suas próprias conclusões…

Faloyin ainda traz uma capítulo inteiro explicando que não existe algo como um sotaque africano, fala sobre a assombrosa quantidade de artefatos artísticos e históricos roubados pelos impérios (o Museu Britânico que o diga) e alguns casos isolados de devolução do espólio, como por exemplo, a Bélgica, que devolveu em 2021 cerca de 2 mil artefatos pertencentes ao Congo por pressão das gerações mais jovens, incomodadas com o passado imperialista. Porém, isso representa apenas 2% do total do acervo dos museus do país provenientes do continente africano.

Existem outros movimentos em andamento (o governo alemão resiste em devolver Neferiti, que fica a algumas quadras da minha casa e milhares de quilômetros da casa dela), mas ainda são incipientes.

CONCLUSÕES

O autor, de alguma forma, mostra esperança nos movimentos jovens e principalmente a participação das mulheres nas mudanças necessárias para que o continente possa se recuperar do estrago causado pelos europeus. É um longo, incerto e complexo caminho, sem soluções fáceis e, pior, feito por humanos imperfeitos e seus erros.

Apesar de ser responsável por apenas 3% da emissão de gases do efeito estufa, cinco países africanos (Moçambique, Zimbabue, Sudão do Sul, Malawi e Níger) estão na lista das 10 nações mais afetadas do mundo pelas mudanças climáticas.  Ele fala também de Nollywood, a indústria do cinema na Nigéria, que vem crescendo e mostrando a realidade do seu país para o mundo, entre outras iniciativas.

No meu mundo ideal, a África seria um continente com todas as suas multiculturas ancestrais, idiomas e etnias intactas, fazendo parte do caldeirão de conhecimento de humanidade, sem nenhuma perda. Infelizmente não dá para mudar o passado e as perdas são irreparáveis.

Mas pelo menos, com conhecimento, informação e boas referências, a gente evita de repetir os mesmos erros. Os africanos não são incapazes e coitadinhos; eles são vítimas de impérios cujos ganhos, posso dizer por mim, que moro na Europa, ainda desfruto. 

No mínimo a gente precisa conhecer a história, participar de movimentos de reparação, parar de repetir bobagens preconceituosas e lutar para que todos os viventes desse planeta tenham direito ao respeito e à dignidade. 

De minha parte, gostaria que o máximo de pessoas possível tivesse acesso a esse conteúdo (que eu não tive na escola) e que livros assim fizessem parte dos currículos de todas as escolas do mundo.

Infelizmente, o livro foi publicado no ano passado e ainda não tem em português (tomara que traduzam logo!); mas se você quiser ter o seu exemplar, aqui o link para a versão em espanhol e aqui a versão original em inglês na Amazon do Brasil.

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