O espontâneo

Trabalhei com um sujeito que pensava em voz alta o dia todo. O resultado é que a gente nunca podia confiar no que ele dizia, uma vez que as idéias ainda não estavam maduras e ele as mudava a toda hora. Nas reuniões, fazia questão de expressar seu ponto de vista, mesmo que não acrescentasse nada no que estava sendo discutido. Ele se gabava de ser autêntico, espontâneo, em resumo: “ele era ele mesmo“. Seu lema: “Quem quiser que goste de mim do jeito que eu sou“.

O resultado é que, na empresa, em vez de ressaltar a sua competência, ele era conhecido como “o chato“. E não estava sozinho não. A legião de espontâneos só vem crescendo depois que os BBBs da vida começaram a alardear em cadeia nacional o valor de ser “eu mesmo“. E, nas empresas, isso está cada vez mais se tornando um problema.

A gente liga a TV, conversa com um colega que viu uma ou duas vezes ou lê uma entrevista; sempre tem alguém contando suas intimidades, seus medos mais profundos, enfim, sendo “ele mesmo“.

Só que expressar segredos (principalmente na empresa) é o equivalente a sair por aí impingindo a nudez a todos, independente do interesse de cada um; além do que, é extremamente sem graça sair por aí mental ou fisicamente pelado. É a maneira mais rápida e eficiente de constranger quem está ouvindo; desde que o mundo é mundo, segredos são interessantes enquanto mantidos em sigilo.

O fato é que o planeta está cada vez mais cheio de gente e todos querem mostrar “seu próprio eu“. Todos estão ansiosos para falar, mas quase ninguém quer ouvir. A gente recebe tanta carga de informação todos os dias que, uma hora, é natural que queiramos nos expressar.

Existem muitas maneiras de se fazer isso e, no local de trabalho, há que se tomar cuidado ao “soltar o verbo”. É que a fala, ao contrário do que muitos pensam, não serve para desentupir cérebros. Para isso existem as artes. Podemos expressar nossos sentimentos desenhando, pintando, escrevendo, filmando, fotografando, blogando, twittando, enfim, opções para desabafar é o que não falta. Se a pessoa não quer se expor, todas essas formas permitem o uso de pseudônimos. Os demais podem ou não apreciar, podem ou não entender, podem ou não ver, ler, apreciar. Eles podem escolher.

Já quando alguém fala num ambiente fechado, como um escritório, os que estão presentes não têm alternativa, eles têm que ouvir, seja o assunto do seu interesse ou não. E dificilmente as pessoas estarão abertas a qualquer tipo de opinião alheia se estão concentradas em outra coisa: lendo e-mails, fazendo um relatório, atendendo ao telefone, pensando sobre um problema ou até vendo televisão. Assim, qualquer coisa que se diga pode perturbar a paz do lugar e desencadear uma crise ruim para todo mundo; é o famoso “climão“.

A questão é que quem fala sem pensar, dificilmente está preocupado em entregar valor ao companheiro de trabalho, cliente ou quem quer que seja. O ideal seria emitir uma opinião somente quando tiver certeza de que tem alguma utilidade ou será bem recebida por quem vai ouvi-la. As pessoas não ficam mudas fazendo isso, pode acreditar. É bem difícil (eu ainda não consigo), mas é o que nos faz civilizados; justamente não sermos espontâneos.

A civilidade consiste, basicamente, na convivência em sociedade, quando se leva em consideração o conforto e o bem estar do outro, além de respeitar o momento de cada um. Mas os espontâneos, ao ouvirem isso, correm logo a recitar o seu mantra clássico “eu eu? quem se preocupa comigo?“.

Os espontâneos têm razão, poucas pessoas hoje em dia se preocupam em entregar valor, justamente porque estão quase todos concentrados no seu próprio conforto e bem-estar, em expressar “seu próprio eu“.

Alguns, bem poucos, é verdade, realmente tomam o cuidado de falar somente quando têm algo a contribuir, ou certificam-se que o assunto tratado é de interesse do interlocutor. E você já reparou que essas pessoas raras são as que sempre têm um astral bacana, são as mais legais, as mais educadas, as mais queridas e incensadas, com quem todo mundo gosta de trabalhar?

Pois não me admira…

*****

Esse texto gerou certa polêmica e decidi esclarecer mais alguns pontos aqui: O civilizado.

10 Responses

  1. Raquel
    Responder
    8 fevereiro 2010 at 12:12 pm

    Lígia, adorei seu texto!

    É muito bom ler sobre pontos de vista diferentes, que levam à reflexão, ampliam nossa visão…

    Mas no meio do tumulto também é um grande alívio ouvir alguém falando exatamente o que nós pensamos. Ler esse texto deu um certo alívio momentâneo.

    Em qualquer ambiente (seja de trabalho ou não, virtual ou físico) é muito chato estar com pessoas que, a pretexto de serem sociáveis e/ou espontâneas, falam tudo que vem à mente.

    (ps.: Já leste “A elegância do ouriço”? Recomendo!)

  2. Alex
    Responder
    9 fevereiro 2010 at 9:36 am

    Design divertido:

    http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI120803-17180,00-ASSOE+O+NARIZ+COM+HUMOR.html

  3. 9 fevereiro 2010 at 7:22 pm

    Olá Lígia,

    Eu e minha namorada gostamos muito dos seus posts, com conteúdos muito legais e boas reflexões. Com esse texto não foi diferente. Resolvi comentar pois já vi e trabalhei com muita gente assim, que para se expressar acaba exagerando, seja no tom de voz alto, na intromissão quando conversamos com outros e, principalmente, na famosa repetição (seja do que ela fala, seja do que os outros falam) em reuniões.

    Eu procuro ser do jeito que você disse no final; escuto muito mais do que falo. Tenho cuidado com a forma que falo, principalmente se o que eu tiver de falar vá desagradar a alguns. O problema é que muitos superiores acabam vendo mais o “carnaval” vazio de alguns do que a idéia ou comentário certeiro de outros mais cuidadosos, e valorizam mais os que apelam pra o show. Confundem participação com aparição e exibicionismo. Creio que muitos “espontâneos” nem percebem que são assim e as vezes acham que estão sendo “competitivos” ou “divertidos”. E muitos chefes caem certinho nesta armadilha.

    Creio que a curto prazo na carreira isso funciona, mas duvido que uma pessoa assim chegue a funções de liderança que realmente dependem da reflexão e de movimentos mais pensados.

    Abraços!

    Lígia Fascioni: Oi, Alex! Que bom que vocês gostam do blog.

    Com relação à preferência dos chefes por espontâneos, não se preocupe, eles logo se tornam cansativos. Além do mais, civilizado não significa sério. As pessoas que mais entregam valor que eu conheço têm o melhor repertório de piadas do mundo (e sabem a hora certa de contá-las) e algumas, inclusive, sabem tocar violão (o que, convenhamos, é um baita diferencial de valor numa festinha…eheheh).

    Há empresas cuja cultura privilegia espontâneos (às vezes reflete a postura do dono). Alguns clientes também se identificam – não é à toa que o Big Brother é campeão de audiência.

    A ideia não era dizer o que é certo e o que é errado (quem sabe disso é padre….eheheh); o objetivo é apenas fazer as pessoas refletirem, se conhecerem melhor e escolherem um posicionamento de maneira consciente e intencional, alinhado com os seus objetivos na vida.

    Abraços, obrigada pela visita (e comentário) e voltem sempre!

  4. Abel Sidney
    Responder
    11 fevereiro 2010 at 11:17 pm

    Tratado
    Abel Sidney

    Estabeleça-se um tratado:
    Doravante todo poeta
    Que não tenha o dom
    Da clariescrevência
    (por conta dos desvios do olhar
    Ao próprio e amado umbigo)
    Deverá escrever
    De próprio punho
    Como adendo ao poema
    Um longo tratado
    Que contenha (no mínimo):
    Glossário, notas explicativas
    Síntese e sumário.

    Condena-se o tal poeta
    (Antes que o mesmo a si imponha
    Tamanho e rigoroso castigo)
    A lê-lo em absoluta solidão
    Até que erga, solene e claro, o olhar
    Acima e além do próprio umbigo.

    Lígia, como se vê, no reino da poesia há muita gente debruçada sobre o umbigo e outros tantos expondo suas entranhas. Enquanto isso está limitado ao livro ainda vai, mas quando se começa a exposição em público, a coisa fica feia e constrangedora!

  5. Maikon
    Responder
    12 fevereiro 2010 at 11:51 pm

    Isto é um assunto essencialmente de gênero filosófico e sociológico. É uma pena que não somos máquinas para programar um comando e ter a certeza de que realizaremos o objetivo sem cair ou tropeçar em alguma infortúnio do acaso, ou de alguma negligência, e nem somos hipersensitivos, a nível paranormal, a ponto de saber o que as outros estão pensado, imaginando e sentindo, ou seja, somos suscetíveis e precipitados, com fraquezas e defeitos em algum atributo ou qualidade da estrutura do “ser” , entretanto somos dotados de potenciais latentes de aperfeiçoamento e aprimoramento, e somos os únicos que temos consciência disto. Devemos nos exigir sim por mais consciência e auto-conhecimento, mas nunca desmerecer, desprezar, causar prejuízos morais e éticos nas pessoas devido as suas incompatibilidades ou carências em suas qualidades por qualquer motivo fútil, perene e meramente pessoal. Nestes casos, motivá-las e incentivá-las ao feedback pessoal, a assertividade e ao juízo equilibrado são dígno de uma boa conduta de liderança. Mas enfim, relacionamento humano, caráter, civilidade, são coisas que não se aprendem somente na escola ou na faculdade, e a troca de experiências sempre serão bem vinda e muito válidas. Os espontâneos se precipitam, pois acredito que não são seguros de si mesmo, e se auto impõem para se auto-afirmarem(creio isto ser inconsciente). Mas há momentos que a espontaneidade é fundamental, principalmente em sessões de geração de idéias e soluções conceituais. Em suma, nem tudo é absolutamente negativo, positivo, completo, definido e universal. Pois sempre temos um conceito ou paradígma de alguma coisa que sabemos ou conhecemos, mas às vezes há momentos que não desconfiamos ou duvidamos do que julgamos saber ou não saber daquilo que sabemos ou não sabemos.

  6. Mauricio Sampaio
    Responder
    14 abril 2013 at 11:39 am

    No texto é bonitinho, mas na pratica é bem diferente.

    Acredito que ser espontâneo é importante para nosso desenvolvimento social e profissional.

    • ligiafascioni
      Responder
      14 abril 2013 at 5:36 pm

      Oi, Maurício!
      Concordo com você que, na prática, isso é bem complicado. Mas talvez eu não tenha sido muito clara no texto, já que não tenho nada contra a espontaneidade em si, mas em como ela é imposta às outras pessoas. Quem sabe com esse texto aqui a ideia fique mais consistente:http://www.ligiafascioni.com.br/2010/02/o-civilizado
      Abraços e obrigada por contribuir com o debate!

  7. Silvia Motta
    Responder
    14 abril 2013 at 11:54 am

    Lígia, obrigada por mais este belo post!

    Acompanho sempre seu blog e agora também pelo Facebook, e como psicóloga posso afirmar que este post em especial revela também o que vejo diariamente no consultório: pessoas que falam sem refletir sobre o que falam, o que em geral causa-lhes muito prejuízo, até financeiro. Para mim isto é fantástico do ponto de vista profissional, uma vez que o que estas pessoas mostram na sessão é a maneira como elas agem em todas as áreas de suas vidas. E saber como o paciente funciona é ‘ouro’ para nós, profissionais; só assim conseguimos acessá-los adequadamente e aí fazemos o longo e árduo trabalho de demolir crenças, valores e comportamentos inadequados e disfuncionais, que produzem tanto sofrimento desnecessário.

    Ah, como este mundo seria melhor se as pessoas fizessem terapia!…

    Bjs

    • ligiafascioni
      Responder
      14 abril 2013 at 5:34 pm

      Concordo plenamente com você, Silvia! Se todo mundo conseguisse se compreender e saber porque age como age, quem sabe nem guerras nós teríamos 🙂
      Abraços!

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