Impensável

Helen Thomson estudou neurociência na universidade e sempre foi fascinada pelo funcionamento do cérebro humano. 

Ela aprendeu que doenças ou anomalias mentais eram resultado de pequenos problemas de funcionamento nas atividades elétricas, desbalanços hormonais, lesões, tumores ou mutações genéticas; algumas dessas coisas dá para consertar. Outras não.  Outras, ainda, não deveriam ser vistas como um problema. Inquieta, curiosa e ávida por aprender mais, ela resolveu ser jornalista científica. Para isso, fez um mestrado em comunicação científica e começou a trabalhar para revistas prestigiadas. Era uma maneira de estar sempre atualizada e não se prender a apenas uma área. 

Mergulhada em artigos técnicos e sem nenhuma emoção, essa moça que escreve muito, muito bem, resolveu viajar o mundo para entrevistar pessoas com cérebros muito especiais e contar suas histórias de maneiras que as revistas científicas nunca fizeram. 

Em “Unthinkable: a extraordinary journey through the worlds strangest brains” (algo como “Imprensável: uma extraordinária jornada através dos mais estranhos cérebros do mundo”), ela conta nove histórias diferentes, ao mesmo tempo em que vai apresentando o que a ciência sabe sobre aquela anomalia e faz uma autoanálise da sua própria massa cinzenta, num exercício de autoconhecimento. A moça conta que, depois dessa aventura, seu cérebro passou a funcionar muito melhor.

Bob, o que nunca esquece

Ela começa com a história de Bob, um homem com uma extraordinária memória para sua própria biografia. Ele não é melhor do que a média para lembrar coisas corriqueiras, números ou fatos históricos. Mas se lembra detalhadamente de todos os dias de sua vida desde que tinha nove meses de idade. Mas tudo mesmo. Se você pedir para ele descrever o que fez em tal dia (quando ela o entrevistou, esse produtor de TV tinha 64 anos), ele revive os sons, cheiros, sente o vento, fala das cores e cada detalhe do que vivenciou naquele dia, como se tivesse acontecendo no momento.

Helen aproveita o capítulo para explicar como funciona a nossa memória. Quando um impulso elétrico passa entre dois neurônios, determinada sinapse, ou caminho entre eles, é reforçada. É como caminhar em uma floresta densa. Na primeira vez, você tem que abrir caminho, mas quanto mais repete a trajetória, mais o caminho vai se alargando e ficando fácil de usar de novo. Se a pessoa não passa mais por ali (ou seja, não usa a informação de novo, não reforça a ligação), o caminho acaba se fechando novamente por falta de uso. Aí é quando a gente esquece de vez aquela informação. O que Bob tem de especial é que ele consegue manter esses caminhos acessíveis e transitáveis mesmo depois de muito tempo. E, mesmo estando sob estudo há décadas, ainda não se descobriu exatamente o que o cérebro dele tem de diferente; apenas que, como as poucas pessoas no mundo que têm essa capacidade, ele é obsessivo-compulsivo. 

Helen escreve de uma maneira realmente prazeirosa de ler; ela explica outros fenômenos relacionados à memória, como o espantoso fato de que é facílimo implantar falsas memórias em qualquer pessoa (ela, inclusive, contou um caso pessoal que aconteceu com ela mesma). 

No final, Bob conta uma coisa muito emocionante. Disse que a melhor coisa de ter uma super memória biográfica é que ele não sente falta das pessoas que perdeu, pois consegue reviver os melhores momentos com absoluta fidelidade, sentindo as mesmas emoções, cheiros, sabores, sons, cores. Já pensou que coisa mais incrível? 

Helen diz que passou a prestar mais atenção no presente, principalmente dos momentos mais felizes: os cheiros, os sons, a temperatura, a luz, para tentar se lembrar depois com mais exatidão. Mesmo que não se consiga, a gente desfruta melhor o presente com essa atenção, né? 

As outras histórias são igualmente interessantes e emocionantes. 

Sharon, a perdida

Sharon, por exemplo, está sempre perdida, pois não consegue se localizar espacialmente. Ela simplesmente não se lembra do caminho entre sua cama e o banheiro, por exemplo, pois o mapa mental que a gente tem do espaço, ela não tem. Para ela, o mundo é sempre um lugar estranho onde ela nunca esteve antes. Imagina a dificuldade que ela tem de ir de um lugar para o outro. Ela já teve que recusar vagas de trabalho porque o caminho até a empresa era muito complicado; como ela não tem nenhuma noção espacial, depende de se lembrar de marcos (lojas, parques, sinais, etc). Se alguma dessas coisas muda, ela se perde completamente. 

Com esse caso eu me lembrei de quando viajávamos meu marido e eu de moto pela América do Sul. Uma vez, no meio do deserto do Atacama, paramos num posto e, conversando com caminhoneiros, ele mostrou no mapa (nessa época ainda era de papel), de onde tínhamos vindo e para onde estávamos indo. Eles simplesmente não entendiam mapas. Explicaram que nos primeiros dias de trabalho, alguém ia junto para ensinar o caminho. Depois eles repetiam, mas não faziam a menor ideia se estavam indo para o sul ou para o norte. Não é incrível?

Mais gente estranha com cérebros esquisitos

Depois ainda tem o Ruben, um espanhol que não consegue evitar de associar uma cor a cada pessoa que ele vê. É um fenômeno chamado sinestesia que mistura os sentidos dentro do cérebro. Ele vê cores envolvendo as pessoas e ele mesmo atribui um significado a cada uma. E sabe o mais incrível? Ele só consegue ver cores na sua imaginação, pois é daltônico!

Tommy mudou completamente depois que sofreu um aneurisma que feriu seu cérebro. Quando acordou, era outra pessoa. Antes do acidente, ele tinha várias passagens pela polícia e uma vida recheada de miséria, abusos e violência. Quando acordou no hospital, ele mesmo ficou assustado em ver tanta beleza no mundo a ponto de ficar emocionado. Ele via números em tudo, e no cérebro dele começaram a habitar figuras geométricas, ângulos, linguagens, estruturas, pinturas, arte. Tudo que não tinha antes (ou ele não percebia).

A análise resumida é que o cérebro parou de filtrar informações e começou a absorver tudo sem nenhum critério. Ele se tornou uma pessoa extremamente emocional e não conseguia mais se concentrar para fazer nenhum tipo de trabalho, exceto pintar compulsivamente.

Sylvia sofre de alucinações constantes e teve que aprender a conviver com isso para não enlouquecer. A gente sabe que o cérebro está trancado numa caixa fechada e escura sem acesso ao mundo real. Ele apenas recebe os estímulos dos nossos sentidos, que são transformados em sinais elétricos. Alucinações (de qualquer tipo: visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil) acontecem quando os sinais elétricos são emitidos mesmo sem estímulo externo. Tipo um curto-circuito entre alguns neurônios. Aí o cérebro interpreta o sinal como se estivesse mesmo vendo uma pessoa, por exemplo. Mas é só um sinal elétrico errado. 

A questão é que o cérebro não tolera ficar sem fazer nada; se você diminui os estímulos sensoriais, ele inventa coisas para se distrair. Então, a receita quase certa para alguém ter alucinações é ficar num lugar que não tenha estímulo sensorial (tipo um quarto escuro, silencioso e sem nenhum cheiro). É claro que a questão é muito mais complexa e estou tentando resumir de uma maneira bem simples. O ideal é ler as explicações e os exemplos que ela dá no livro, sempre com muitas referências.

Tem também Matar, um homem que mora nos Emirados Árabes e que “se transforma” em tigre em situações de stress (tipo o Hulk, só que nada muda na aparência externa dele). A sensação é tão forte que ele tem vontade de atacar pessoas.  Aqui ela analisa e mostra casos de esquizofrenia e porque no caso dele não se aplica completamente.

Louise é um caso muito curioso: ela percebe seu corpo e sua vida com se não fizesse parte e fosse uma espectadora. Graham não apenas acredita que está morto, como, mesmo falando, andando e vivendo como qualquer um de nós, sua atividade mental é bem próxima de uma pessoa morta mesmo. Por último tem o Joel, que tem uma capacidade sinestesia de sentir a dor de outra pessoa que estiver perto dele.

Em todos os casos ela cita os estudos e os médicos responsáveis por cada caso; os diagnósticos, os tratamentos, os casos semelhantes e a evolução de cada paciente.

Nosso cérebro é mesmo uma máquina muito complexa; e parece ser muito fácil de estragar tudo e fazer a vida de alguém se tornar um inferno. As pessoas travam batalhas internas que a gente não faz ideia. Ou melhor, com a ajuda luxuosa da Helen, agora faz. Pelo menos um pouco.

Fascinante, interessantíssimo, recomendo muito.

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