Estranho numa terra estranha

Para ser bem sincera, não me lembro exatamente como cheguei nesse livro, mas foi alguma recomendação forte, e já faz alguns meses. “Stranger in a Strange Land” (tradução livre: “Estranho numa terra estranha”), de Robert A. Heinlein me foi apresentado como um clássico da ficção científica do qual eu nunca tinha ouvido falar.

Olha, como é bom ser ignorante e descobrir esses tesouros, mesmo que com anos de atraso! 

O livro me despertou emoções bem dúbias. Primeiro porque não sei se dá para classificá-lo como ficção científica, pois o mundo futuro é mais um pretexto, um cenário, do que a essência da obra. Depois porque foi escrito em 1961 e quase consigo ver as personagens femininas com seus figurinos compostos por sutiãs de cone e minissaias; competentíssimas como enfermeiras, cozinheiras ou secretárias; mas, de resto, ignorantes de todas as outras coisas do mundo… sem falar que a história trata mais de filosofia, política e religião do que ciência. 

Excetuando-se os perfis femininos, bastante estereotipados, na minha opinião, a história é bem interessante e faz pensar. 

Tudo começa com uma missão de cientistas que sai da terra para colonizar Marte (Elon Musk, preste atenção…rs).

O contato é perdido por algum tempo, alguns morrem, outros sobrevivem. No final, a leitura das bases terráqueas é que ninguém sobreviveu. Até que descobrem um descendente de um dos casais que compunham a missão; dois dos mais brilhantes cientistas de seu tempo. 

O rapaz se parece com um humano meio esquisito, mas cresceu e foi criado por marcianos achando que era um deles. Quando resgatado, é isolado num hospital e muito bem guardado por policiais até que recupere as forças; seu corpo e sistema muscular não estão preparados para a gravidade na Terra; o sistema digestivo ainda não consegue processar bem a nossa comida.

Os marcianos, segundo Mike, o “Homem de Marte”, não são seres sexuados. Eles são divididos em categorias de acordo com a idade; os bebês e crianças são considerados “ovos”. Depois, crescem e viram ninfas, seres redondos como esferas e cheios de energia. Elas é que dão origem aos ovos. Depois de adultos, todos os seres viram machos (se é que se pode designar algum gênero), com praticamente nenhuma atividade física — eles são quase que totalmente mentais.

Outra coisas interessante é que aparentemente eles podem “desincorporar”, ou seja, separar o “espírito” do corpo, toda vez que sentem que o corpo não está dando conta de alguma situação. Depois, se quiserem, voltam. Quando não querem mais voltar, os amigos comem o corpo num ritual e eles viram sábios, com todas as respostas para as perguntas da humanidade.

Quando a missão terráquea chegou em Marte, os nativos não se importaram muito. Tem uma parte que um dos personagens faz uma metáfora interessante: eles observaram os terráqueos como formigas dentro de uma redoma numa feira de ciência. Tão primitivos que não ameaçam ninguém, mas podem ser interessantes para observar.

Bom, com esse histórico, Mike é “resgatado” e vem para a Terra, lugar que ele não tem nenhuma identificação. Nem mesmo sabe falar as línguas do planeta (o idioma marciano tem sons diferentes e significados ainda mais intraduzíveis). Vários dos conceitos humanos como posse, casamento, amor, poder, ciúme, não faz nenhum sentido para eles.

Como filho de terráqueos muito inteligentes e tendo vivido toda a sua vida até então em Marte, ele se esforça muito para se adaptar a esse estranho mundo. 

Uma coisa que os médicos observam é que ele parece controlar o corpo com a mente; sua adaptação física é impressionante — ele consegue criar músculos, dar forma à sua expressão facial (até então neutra e parecendo um bebê) e aprender rapidamente qualquer coisa.

Eis que uma enfermeira, provocada por um repórter que quer uma entrevista exclusiva com o tal Homem de Marte, acaba conseguindo entrar no quarto e conversar um pouco com ele. 

Mike, que nunca tinha visto um humano fêmea na vida (até então ele era guardado por policiais homens), fica encantado. Quando ela lhe oferece água, seu encantamento aumenta ainda mais, porque, em Marte, quando alguém compartilha a bebida com você, se torna seu “Irmão de Água”. É mais do que um parente; é um parceiro até a eternidade, com quem você pode compartilhar absolutamente tudo e confiar cegamente.

Ao descobrir que o repórter (por quem ela estava apaixonada) desapareceu (ele estava incomodando demais o governo), resolve sequestrar Mike (gênia). Sem ter onde levá-lo, lembra-se de um magnata que é um contato importante do repórter.

Jubal, um ex-advogado, médico, escritor e milionário e com um passado cheio de influências bem próximas ao poder, é descrito como se fosse aquele velho da Playboy, lembra? Um que vivia numa mansão cheia de “coelhinhas”? Pois Jubal é uma versão mais light, pois, apesar do séquito de acompanhantes, não aparece em nenhuma cena depravada.

É aquele personagem que a gente adora odiar, pois é inteligentíssimo, culto e parece ter princípios éticos. Ele acolhe Jill, a enfermeira (claro que ela é linda, senão não teria chance), e Mike. Ele e suas auxiliares se tornam também irmãos de água de Mike e ele não apenas possibilita que Mike tenha tudo o que precisa para aprender as coisas sobre o planeta Terra, mas também passa a defender seus interesses financeiros (Mike passa a ser o proprietário legal de Marte e recebe royalties por isso).

Jubal arma uma série de situações como só um estrategista muito genial pensaria e consegue, inclusive, a libertação do tal repórter que começou toda a história, além da guarda legal de Mike, que estava sob custódia do governo.

Mike também fica fascinado pelas religiões e suas enormes e óbvias contradições ente “a palavra” e a prática de seus crentes; estuda várias, começa a fazer parte de uma para tentar compreender, questiona tudo.

Enfim, para mim, o grande mérito do livro é que o autor, na pele de Mike, consegue zerar (ou pelo menos reduzir bastante) os preconceitos terrenos relacionados à religião, divindades, liberdade sexual e de expressão, consumismo, conservadorismo, estruturas de poder e cultura — e olhar com os olhos limpos e inocentes de um estranho, no caso, Mike.

Com isso ele consegue expor todos os paradoxos e contradições. 

Mas, como humano e influenciado por eles, o Homem de Marte nunca será um marciano, a ponto de tornar-se um líder religioso e desenvolver todos os desdobramentos que esse papel traz.

Quando o livro foi lançado, em 1961, e ganhou o maior prêmio de ficção científica, o Nebula, em 1962, o mundo ocidental estava passando por uma revolução nos costumes onde tudo era questionado. A obra serviu como referência para inúmeros debates e para toda uma geração que afrontava o moralismo da época, inclusive servindo como manifesto para o movimento hippie.

Heinlein, veja só, foi o responsável por inserir um novo verbete no vocabulário da língua inglesa: o verbo to grok (em português seria algo como grokar), usado pelo Homem de Marte para traduzir uma expressão marciana que não tinha palavra equivalente em inglês.  Grok reúne vários significados como comer, beber, absorver, sentir, aprender, fazer parte, ou seja, compreender da maneira mais profunda possível um conceito, ideia ou pessoa. 

O clássico foi adaptado em 2016 para uma série (que não assisti).

Cheguei bem atrasada, mas ainda dá tempo de conhecer. 

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