Gato de harém

Estava lendo um livro de introdução à filosofia (meu progresso é muito lento, ainda não consegui passar dos introdutórios) quando me deparo com a seguinte frase de Aristóteles “a filosofia começa pelo espanto”. Como assim? Ainda bem que o livro era de introdução, pois logo veio a explicação mastigadinha: quer dizer que se a gente se permitir se espantar com as coisas do mundo e pensar mais a respeito delas, saímos do estado vegetativo trabalha-ganha-compra-trabalha para pensar o que, de verdade, estamos a fazer nesse planetinha azul.

O problema é que é muito difícil se espantar hoje em dia, quanto mais filosofar a respeito. Vamos pensar primeiro no espanto.

Segundo o Aurélio, espanto é susto, medo, assombro, admiração, surpresa. A gente fica assombrado quando vê algo diferente, que não está acostumado. Aliás, esse é um requisito perceptivo para a gente prestar atenção em qualquer coisa. Segundo a teoria da percepção, para a gente notar algo, é preciso de um ou mais fatores internos (motivação, experiência) ou externos (intensidade, contraste, movimento, incongruência).

Eu explico melhor: Como é impossível a gente processar tudo o que os nossos sensores (olhos, ouvidos, língua, pele e nariz) captam, o cérebro faz uma triagem baseado nos tais fatores. Do ponto de vista interno (que depende de cada pessoa, seu contexto e sua história), é preciso estar motivado para prestar atenção em um estímulo. Não adianta o Brasil fazer um gol na final da copa se a pessoa estiver passando por uma crise existencial braba porque levou um pé do ser amado. O desiludido não vai nem notar o gol. O outro fator interno é a experiência. Uma pessoa que mora de frente para o mar e o vê todo santo dia certamente tem uma reação diferente de outra que está vendo aquela imensidão pela primeira vez nos seus 60 anos de estrada. E quem mora perto de aeroporto não se assusta mais nem com pouso de disco voador.

Do ponto de vista externo, são mais variáveis. A intensidade diz respeito a quão fortemente o meu sensor é afetado pelo fenômeno. É mais fácil perceber uma comida muito salgada, um barulho muito alto, alguma coisa que machuca bastante, e por aí vai. O contraste fala sobre as diferenças contextuais. Se está todo mundo numa festa na maior beca e aparece alguém com roupas rasgadas, é impossível deixar de reparar. Da mesma maneira que alguém que dá um grito num lugar silencioso com certeza não passa despercebido. O movimento atrai a atenção do ser humano naturalmente, pois observar algo se mexendo (ainda mais com velocidade) é importante para a nossa sobrevivência. Levante a mão quem nunca foi atraído pelo rastro de uma moto esportiva passando como um bólido. A incongruência é o chamar atenção pelo absurdo, esquisitisse, bizarrice, insolitez. Um rinoceronte que soubesse sapatear ao som de funk faria sucesso por um bom tempo, pode ter certeza. Assim como um político que devolve uma mala de dinheiro que achou na rua. Ninguém espera uma coisa dessas. Ainda se fosse um gari…

A questão é que o ser humano nunca foi tão submetido a estímulos como nos tempos atuais. É tanto barulho, tanto som, tanta cor, tantos cheiros e gostos que a gente fica quase que anestesiada. Basta um ciumento trancar a namorada por dias fazendo chantagem pela televisão para aparecerem mais dois na semana seguinte fazendo a mesma coisa – você não viu a notícia? É que já não é mais manchete, virou rotina. Lembro bem de uma frase da minha querida avó Bercides, do alto de seus 90 anos, que dizia, ao saber de um evento fantástico ou inusitado: “nada mais me surpreende”. Será que, como predisse o brilhante (e espantoso) Luís Fernando Veríssimo, estaríamos todos virando gatos de harém?

Gato de harém, segundo Veríssimo, é aquele que já viu tudo, já viveu tudo e passa os dias aborrecido cochilando nos colos macios das odaliscas. É a própria personificação do tédio. A toda hora a gente vê alunos que só lêem um livro se for cair na prova; profissionais que só aprendem porque o chefe intimou; empresas que só fornecem serviços porque a lei manda; cidadãos que só votam porque são obrigados; gente que só faz exercício porque o médico mandou. Praticamente um bando de zumbis, matando o tempo em frente a programas ruins na TV.

Viver no automático pode ser mais confortável, mas impede a gente de se espantar, e, em última instância, de viver.

Voltando à filosofia para principiantes, Descartes esculpiu a máxima “penso, logo existo”. Se a gente não se espanta nem pensa mais, será que está, de uma maneira indireta, deixando também de existir?

Por via das dúvidas, é melhor tentar continuar me espantando. Vou ver o que diz o próximo capítulo…

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

1 Response

  1. 30 outubro 2008 at 3:51 pm

    Lígia, essa constatação já venho percebendo há um tempo. Infelizmente cada vez mais não tomamos mais iniciativas para produzir algo, faço pós em Design aqui na minha cidade e fico muito desmotivado ao constatar que a grande maioria não lê um livro, não discutem nada. Só lêem algo qd o professor passa (às vezes nem isso). Acho q nem gato de harém somos mais, porque não vivemos e já estamos entediados.

    Abs.,
    Rogério Caetano

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