O órgão e o saxofone

Sabe de onde vem a palavra digital? Vem do latim digitus, que em bom português é dedo, desses que você tem 5 em cada mão. Antes da palavrinha cair na boca do povo, era tudo analógico, o que quer dizer que as ondas elétricas que mostravam a variação da grandeza no tempo eram análogas à natureza do negócio a ser medido.

Para facilitar a manipulação e simplificação dessas ondas tão complexas é que a eletrônica transformou tudo em dígitos. Em vez de toda a infinita gama de variações possíveis, a coisa passou a ser modularizada. O sistema digital tem esse nome porque resolve tudo com um dedo só (ou um bit, como queira). Se o dedo está levantado, significa 1 (sinal); se está abaixado, é zero (não sinal). Ou seja, o sistema digital transforma tudo em 0 ou 1. Sempre há perdas na transformação, pois, ao contrário do analógico, cuja resolução é infinita, no sistema digital sempre há que se tomar uma decisão sobre quantos dedos levantados ou abaixados vou usar para representar a mesma coisa (ou seja, quantos bits).

Tá, mas por que esse papinho nerd agora? É que acabei de vir de um concerto na Filarmônica de Berlin que me fez pensar essas coisas. Não, não estou louca; já explico a relação entre os assuntos: é que o concerto era com apenas um órgão* (desses de igreja, que ocupa uma parede inteira de tubos e é operado por meio de uma coisa parecida com um piano) e um saxofone. Sim, a música clássica contemporânea pode ser bem ousada quando quer: eles simplesmente reuniram um órgão, cuja morada natural é uma igreja bem antiga, com um sax (para mim, o instrumento mais pagão e sensual de todos). Olha, não entendo muito de música, mas adorei a mistura inusitada.

Uma das coisas mais sensacionais nessa cidade é que as crianças todas aprendem música clássica na escola e ouvem-na desde pequenininhas; o resultado é que os músicos eruditos são como atores globais por aqui e os espetáculos, numerosos, estão sempre cheios. As estrelas aparecem em revistas, programas de entrevistas, jornais, cartazes espalhados pela cidade e são tratadas como celebridades. As fotos das instrumentistas parece um book de propaganda de shampoo; os maestros, por sua vez, capricham no ar de mocinho descabelado de romance antigo.

Bom, já sei que tem gente aí com o discurso previsível pronto e ensaiado: “isso é que é país de primeiro mundo; cultura boa é essa, não pagode e nem axé“.

Pois era justamente nesse ponto que eu queria chegar. Sim, aqui tem música clássica da boa e todo mundo gosta. Mas deve ser também a cidade com a maior quantidade de clubes por metro quadrado do continente. E toca de tudo: house, rock, world, jazz, blues, metal, coutry, pop, folk, progressivo, trance, fusion e todas as variações eletrônicas com aqueles nomes estranhos que nomeiam também as tribos; não me surpreenderia se tivesse pagode. Tem espetáculo de música africana; tem batuque caribenho, tem Bebel Gilberto, tem Lady Gaga, tem Adele e tem Michel Teló também, sim senhor.

Isso, para mim, é que traduz a real cultura. Não se deixar deslumbrar pelo digital, pelo sim OU não, pelo isso OU aquilo. O que impede a pessoa de sair de uma ópera direto direto para um café que toca música cubana? A lendária banda Scorpions (sim, eles ainda existem) compartilha a mesma bilheteria de ingressos que aquele maestro com estampa de canastrão, o André Rieu. Uma violoncelista célebre e o Coldplay podem jantar no mesmo restaurante que as pessoas não se ofendem ou tomam partido como se fossem torcedores fanáticos de clubes de futebol adversários.

É que eles sabem que o mundo é, na verdade, analógico. A digitalização traz conforto e simplicidade sim, mas para para não se perder informações importantes é preciso de muito mais dedos do que sonhamos ter. Por que teimar em digitalizar tudo, categorizar os gostos em bom ou ruim, certo ou errado, feio ou bonito, brega ou chique, culto ou popular, 1 ou 0?

A ideia não é decidir o que as pessoas têm que gostar ou não. A ideia é justamente explorar as infinitas nuances que o analógico permite; prover o maior número possível de opções e variações para cada um escolher o que quer, sem ter que abrir mão de nada.

Parece que tem um povo que anda meio esquecido disso, mas não custa lembrar: gente, a vida não é digital; a vida é analógica, com todos os ruídos e imperfeições que isso implica. E com todas as infinitas possibilidades também.

_______

* NOTA 1: Nunca tinha visto ninguém tocando um órgão antes. A moça, de 22 anos, virtuose consagrada e ganhadora de vários prêmios, senta num banco comprido e toca com as mãos os 4 andares de teclado; os pés operam um quinto teclado, que fica no piso do instrumento. Pois ela sapateia, faz moonwalk e dança mexendo o corpo todo enquanto toca; teve uma peça que ela tocou inteirinha só com os pés. Analógico no último…

NOTA 2: Sim, é claro que o controle interno do instrumento devia ser eletrônico. Antes dos comentários óbvios, quero dizer que estou usando aqui os sistemas analógico e digital apenas como metáfora, ok?

9 Responses

  1. 29 janeiro 2012 at 3:17 pm

    Lígia
    Você é um gênio! Não canso de elogiar a sua capacidade de costurar tão bem os argumentos. e apresentar de forma tão clara o que parece ser tão complicado.
    A minha passagem diária pelo seu blog faz parte do meu investimento pessoal em “Pesquisa e Desenvolvimento”. E a minha aula diária de “cultura com tecnologia”.

    Os seus artigos (da fase alemã) estão ajudando a clarear a minha visão da Alemanha e da Europa. Agradeço muito por isso.

    • ligiafascioni
      Responder
      29 janeiro 2012 at 5:05 pm

      Nossa, agora fiquei até vermelha (mais…eheheh).
      Obrigada!
      Essas palavras vindas de um profissional do seu gabarito me enchem de orgulho (e de responsabilidade!!).
      Beijocas,

  2. Marciane Faes
    Responder
    29 janeiro 2012 at 5:54 pm

    Obrigada por nos trazer uma realidade organística aqui no blog.

    • ligiafascioni
      Responder
      29 janeiro 2012 at 6:35 pm

      Aahahah… de nada, Marciane!

  3. Clotilde♥Fascioni
    Responder
    29 janeiro 2012 at 6:49 pm

    Lindo e ilustrativo.♥

  4. Gustavo
    Responder
    31 janeiro 2012 at 5:39 am

    este controle interno aqui não é eletrônico, veja, totalmente analógico e necessita do auxílio de uma segunda pessoa hehe: http://www.youtube.com/watch?v=Ipp0H8tv5Hw&feature=related

    Muito bom! Enquanto isso aqui no Brasil, as crianças ouvem funk…o ritmo mais degradante possível, que vc esqueceu de mencionar da nossa cultura brasileira rs.

    • ligiafascioni
      Responder
      31 janeiro 2012 at 2:22 pm

      Gustavo, quando eu era pequena, em Campinas, Sao Paulo, tinha concerto gratuito da orquestra sinfônica pelo menos uma vez por mês. Nossas crianças ouvem funk porque não têm muito o que escolher. Até poderiam ouvir funk, mas se tivessem acesso a outros ritmos e gêneros, cresceriam muito mais ecléticas…

  5. Alberto Costa
    Responder
    6 junho 2013 at 10:50 am

    Lígia,
    morando em São Paulo, levei várias vezes meus filhos pequenos para assistir a concertos vesperais, gratuitos, no Teatro Municipal (o protagonista era o Isaac Karabtchevsky – tive de recorrer ao Google para digitar o nome dele – e a sinfônica da cidade).
    Outras vezes, fomos ao Parque do Ibirapuera com a mesma finalidade. E frequentamos concertos e recitais de coros na Sala São Paulo, na Catedral Presbiteriana, na Igreja do Mosteiro de São Bento. Tudo de graça.
    As igrejas batistas que frequentamos nos 16 anos em que residi lá tinham vários coros e conjuntos vocais (minha esposa foi a fundadora e regente de um conjunto vocal feminino que ainda existe) e orquestra.
    Em Floripa, somos fãs do Camerata Florianópolis e da OSSCA, vivo tomando café na Escola de Música Rafael Bastos e assistindo os recitais de alunos de canto no Teatro Álvaro de Carvalho.
    Várias pessoas de nossa família são cantores, seja em coros e conjuntos vocais seja como solistas, regentes, organistas, pianistas, violonistas, violinistas, etc.
    Eu cresci ouvindo música popular no rádio (de Teixeirinha a Jessé, de Elton John a Demis Roussos, de Beatles, Rolling Stones e The Hollies a The Partridge Family e Pholhas, além de Rita Lee e Raul Seixas), cantando hinos sacros na igreja sob a regência exigente de meu pai, ouvindo música clássica e orquestras das coleções do Readers Digest em um toca-discos do tempo dos Flintstones e ouvindo meu pai cantar, no chuveiro, entre muitas outras, “Delilah” (do Tom Jones – minha mãe se chama Dalila).
    Ainda aprendi a gostar de muito mais gêneros e artistas com minha esposa (MPB), com meu cunhado (o rock dos guitarristas – ainda sou fã do Eric Clapton), com meu filho (que trouxe Muse para dentro de nossa casa, uma das melhores bandas contemporâneas).
    Meu hobby principal, hoje, é fuçar o You Tube, descobrindo o que eu já conhecia e um monte de coisas que, por descobrir, me tornaram muito mais rico.
    Não, eu não gosto de tudo que há, mas, em geral, não se pode dizer que eu tenha preconceito contra nada – quase tudo de que não gosto é por pós-conceito mesmo (já gostei de Chico Buarque e de Milton Nascimento, mas o esquerdismo quase religioso das letras do primeiro me dá urticária e a voz do segundo cansa-me a beleza, sei lá por quê). Ou seja, eu sei porque não gosto, embora saiba, também, que há poucos letristas no mundo como o Chico (o Djavan é um deles) e poucos mineiros como o Milton (o Guimarães Rosa é um deles), embora ele seja carioca.
    Variedade e quantidade, na infância, fazem milagres com os neurônios da gente. E órgãos de tubo fazem milagres sonoros, assim como a guitarra do Eric, o piano do Elton John e o sotaque do Dr. House (um folk singer e pianoman brilhante, em sua pele de Hugh Laurie).
    Abraços.

    • ligiafascioni
      Responder
      7 junho 2013 at 4:00 am

      Alberto, meu querido, eu sempre soube que você era analógico….rsrsrsrs
      Eu também cresci ouvindo a Sinfônica de Campinas, Demônios da Garoa e Clara Nunes 😉
      Beijos!

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