O que uma coreógrafa pode nos ensinar sobre criatividade

A imagem mostra um grafite hiperrealista de uma mulher se alongando com os braços abertos e uma blusa azul.

Uma mulher, já septagenária, encontra-se numa sala grande, com pé direito alto, totalmente vazia, exceto pelos espelhos e as barras de exercícios fixadas nas paredes. É o equivalente à tela em branco para o pintor, à pedra bruta para o escultor, à folha em branco para o escritor. Ela tem apenas cinco semanas para criar, produzir e estrear um espetáculo de dança que as pessoas jamais esqueçam. Precisa decidir o tema, as músicas, os cenários, quantos e quais bailarinos participarão em cada etapa, os figurinos e a iluminação.

É claro que pode contar com a ajuda de especialistas, mas é a responsável pelo conceito. E ela consegue. Já fez isso mais de uma centena de vezes.

Twyla Tharp, a mulher de quem estamos falando, tem conhecimento de causa para nos presentear com o ótimo “The creative habit: learn it and use it for life” (tradução livre “O hábito criativo: aprenda-o e use-o para a vida“). Ela já trabalhou com as maiores companhias de balé do mundo, criou espetáculos para gente como Mikhail Baryshnikov, coreografou os filmes Hair, Ragtime, Amadeus e O Sol da meia-noite, além de vários musicais na Broadway.

Pode acreditar, um dos maiores nomes da dança contemporânea do século XX  sabe exatamente o que está falando quando discorre sobre criatividade.

No livro, ela confirma tudo o que outros especialistas já disseram sobre o tema: trata-se de um hábito, não iluminação divina (falo mais aqui). Twyla ainda reforça: se a criatividade é um hábito, a melhor criatividade é o resultado de bons hábitos de trabalho. Essa história de gênios naturais não existe e ela usa a história de Mozart como exemplo (ela se aprofundou muito na vida dele, pois coreografou o filme Amadeus).

Twyla explica que Mozart só conseguiu florescer porque tinha Leopold como seu pai, um dos mais famosos compositores e pedagogos da Europa na sua época, além de reconhecidamente um músico virtuoso no violino. Cultíssimo, mente aberta, colocou à disposição do filho todo o tipo de conhecimento possível.

Observando que o menino gostava de música, ensinou tudo o que era necessário sobre a arte, incluindo harmonia, composição e contrapontos; a criança teve acesso aos melhores concertos, os melhores professores e os melhores instrumentos. E mais: Mozart dedicou-se mais do que qualquer outro músico à sua paixão.

Aos 28 anos, além do precioso acervo, o famoso compositor partiu com suas mãos completamente deformadas pelo exercício compulsivo e incansável. Sim, ele tinha um dom, não se pode negar. Mas sem a disciplina férrea, a obsessão pela música, o acesso que seu pai lhe deu, poderia não ter passsado de apenas mais um jovem talentoso.

Infelizmente que essa ideia não vende; o próprio filme Amadeus prefere a versão da genialidade gratuita e impossível; ela nos conforta mais como seres humanos e nos redime do esforço, afinal, não nascemos gênios. Hábitos, exercícios e sacrifícios são muito chatos. Acreditar em genialidade é muito mais confortável, como explica esse outro livro aqui.

Twyla enfatiza também o quanto os rituais são importantes para se definir hábitos. Morando em New York, ela conta que acorda todos os dias às 5h30, veste-se, sai de casa, pega um táxi e vai até seu estúdio para se exercitar. É claro que ninguém (nem ela mesma) gosta de sair da cama a essa hora da madrugada, especialmente no inverno. O jeito é fazer tudo automaticamente, como se estivesse escovando os dentes. E a chave do ritual, por incrível que pareça, está em chamar o táxi. Porque, depois disso, não tem mais volta; ela tem que ir.

Twyla relata rituais de profissionais de várias áreas; pintores que precisam de uma playlist para trabalhar, chefs de cozinha que precisam molhar a horta antes de começar o dia, e até Igor Stravinsky, que tocava uma peça de Bach antes de qualquer coisa. Você também deve ter os seus, dê uma reparada. Os rituais amarram o hábito e fazem com que ele se torne mais fácil e familiar.

Essa incrível mulher fala também sobre medos, sobre seu interessante hábito de colocar todas as informações sobre um projeto (incluindo inspirações) numa caixa de papelão, sobre imprevistos, sobre sua experiência como coreógrafa e que só se sentiu no perfeito domínio de sua profissão quando conseguiu apresentar seu 128° trabalho.

Gostei especialmente da fala dela sobre a prática da leitura. Ela diz que lê por várias razões, e o prazer é a última delas.

Ela lê para adquirir vantagem competitiva e cita Mark Twain: “uma pessoa que não lê não tem nenhuma vantagem sobre uma pessoa que não sabe ler“. Essa doeu, hein?

Ela lê para crescer e se desenvolver, pois acredita firmemente que a diferença entre a pessoa que você é hoje e a pessoa que você será daqui a cinco anos depende de dois fatores: as pessoas que você encontra e os livros que você lê.

Mas principalmente, ela lê para se inspirar. 

Recomendo o livro para todo mundo que tenha interesse no assunto (na verdade, todo mundo que produz algo, pois o conteúdo é útil sob vários pontos de vista); ainda tem vários exercícios de criatividade bem fáceis de se praticar.

Como já dito, o hábito de ler é ótimo e recomendo esse livro para todo mundo. E olha que nem precisa saber dançar…

2 Responses

  1. Ruy Flávio de Oliveira
    Responder
    4 fevereiro 2017 at 3:52 pm

    Excelente artigo, Ligia. Twyla Tharp tem toda razão: criatividade também é um caso de 1% inspiração e 99% de transpiração.

  2. Andrėa
    Responder
    4 fevereiro 2017 at 4:27 pm

    Achei incrível. Vou procurar esse livro por aqui. Realmente uma lição.

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