Parábola do semeador

Octavia Butler é uma das escritoras mais premiadas com seu trabalho sobre afrofuturismo e inserções na ficção científica, então minha expectativa já era alta. Gostei muito de Kindred (resenha aqui), mas “Parable of the sower” (Tradução livre: “Parábola do semeador”) é seguramente o livro mais impactante que li esse ano. Não é um clássico à toa.

Bom, é preciso dizer que é a distopia mais aterrorizante que já li, e mais por causa da possibilidade do cenário se tornar real. O livro foi publicado em 1993 e Octavia projeta um futuro 30 anos à frente, ou seja, agora.

A história começa em 2024 quando Lauren, a protagonista, tem 14 anos e mora em Robledo, uma cidade próxima a Los Angeles, EUA. Ela vive no que imagino ser um daqueles bairros de subúrbio que aparece nos filmes: casas grandes, sem muros, com jardim e quintal, em ruas arborizadas. 

Só que na história, algumas coisas aconteceram: crises econômicas sucessivas fizeram com que as pessoas perdessem seus empregos. Então, mesmo pessoas muito bem qualificadas ganham menos que o necessário para sobreviver. Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas se agravaram, fazendo com que a água potável fique absurdamente cara. Para piorar a situação, uma nova droga está no mercado; ela faz com que as pessoas tenham um prazer profundo e inenarrável ao ver fogo — então, incêndios criminosos escalam o tempo todo.

O tecido social se rompeu, ainda mais nos EUA, onde é cada um por si. A polícia foi privatizada e as taxas de serviço são altas. Chamar a polícia é como chamar uma ambulância: certeza de que a conta virá salgada. Os bombeiros, então, quase inexistem, pois ninguém está disposto a desperdiçar água caríssima apagando incêndios.

Para se proteger, os moradores do bairro onde Lauren mora fizeram cercas altas em volta das casas (acho que são 11 ou 12) construindo uma fortaleza (já tem alguns condomínios assim no Brasil). Os moradores só saem em grupos e armados; o cenário é de fim de guerra — pessoas mortas em todo lugar, drogadas, sujas, famintas e desorientadas. Sair com roupas limpas é ostentar e se tornar alvo fácil para as gangues. 

Somente os super ricos conseguem fugir disso dentro de suas fortalezas, mas nem assim é muito seguro. Sair para trabalhar é complicadíssimo, pois é ter que enfrentar a selvageria a pé (combustíveis fósseis são caríssimos também, então as pessoas não têm mais carros). 

Existe a questão racial (a maioria dos personagens da comunidade é negro — incluindo a protagonista e sua família — ou latino; mas há alguns poucos brancos).

O pai de Lauren é um homem culto e muito bem educado; tanto ele como a esposa são PhDs, assim como boa parte da vizinhança. A questão é que as crianças e jovens não têm como sair de casa para estudar nessas condições (sem dizer que escolas são caras, pois, privadas). 

Então o pai de Lauren, que também é pastor e trabalha numa universidade, acaba sendo o líder dessa comunidade e fundou uma escola em casa (que também funciona como local de cultos) para atender aos mais jovens. Lauren ajuda a cuidar dos pequenos e também dá aulas.

A comunidade planta e troca trabalhos diversos, conforme sua especialidade; uns protegem aos outros como podem.

A questão é que a mãe da menina, que morreu quando ela nasceu, era viciada em uma droga e a deixou com uma sequela: Lauren tem hiperempatia, ou seja, se uma pessoa ao lado dela se machucar, ela sente todas as dores físicas. Agora imagina ter essa síndrome e viver nesse mundo.

Lauren é também muito inteligente: ama ler, escrever e aprender coisas. Como a maioria dos adolescentes, questiona tudo, principalmente a fé de seu pai. Ela não consegue acreditar nesse Deus que é quase uma figura mitológica, especialmente porque vê que as coisas estão piorando a cada dia e as perspectivas são assustadoras. 

Lauren resolve buscar sua própria definição de Deus e conclui que ele é movimento, mudança. Porque a essência de tudo é essa. Tudo muda, o tempo todo, nada é permanente. 

Tem até uma parte com a qual me identifico muito, quando ela percebe que Deus não criou o homem à sua imagem e semelhança; é justamente o contrário — o homem é que criou um Deus parecido com ele — as pessoas dão forma ao que acreditam ser Deus conforme elas próprias são. 

Pode ver: se a pessoa é infeliz e julga muito os outros, o Deus dela é implacável. Se a pessoa é amorosa, o Deus dela também é. E Lauren acredita que Deus não precisa ser uma entidade, um personagem, uma criatura. Pode ser um conceito abstrato, como a mudança.

E poderia ficar só nisso, mas, como a moça cresceu num ambiente religioso, ela quer criar uma religião com essa crença no Deus como sinônimo de mudança. E ela chama essa “igreja” de “Sementes da Terra”. A ideia é criar uma comunidade que irá crescer e habitar outros planetas (confesso que essa parte não entendi muito bem, mas vá lá). Ela começa a escrever um diário em forma de versos que seria uma espécie de Evangelho para essa religião.

Lá pelas tantas, Lauren se dá conta de que o oásis que eles construíram com os vizinhos vai se enfraquecendo a cada dia e o seu tempo está acabando; há assaltos, mortes, roubos — um dos seus 4 irmãos foge e se envolve com gente perigosa; o pai sai para trabalhar e não volta. O mundo está se dissolvendo e não há perspectivas: ela vai ter que sair dali para criar sua própria comunidade em outro lugar.

As coisas se complicam a ponto de vizinhos se inscreverem num concurso para morar numa cidade próxima, que foi comprada por uma empresa multinacional. A empresa cercou a cidade toda e se responsabiliza pela segurança. Só pode morar lá quem for funcionário. Os salários são abaixo da média (que já é baixíssima) e os moradores só podem comprar nas lojas da cidade. Ninguém pode deixar sair pelos portões se estiver em débito com a companhia. A descrição perfeita da escravidão moderna apoiada pelo Estado, mas muitas pessoas, desesperadas, acham uma boa ideia trocar sua liberdade por “segurança”. Enfim.

Eis que chega o dia fatídico e os portões da comunidade são arrombados, as casas queimadas e os moradores assassinados por gangues de fanáticos. Lauren consegue fugir e volta, dias depois, para ver o que sobrou. Ela viu muitos seus vizinhos mortos pelo caminho, mas não tem notícias da sua madrasta e irmãos. 

No final, ela se encontra com a esposa mais nova de seu vizinho (que tinha comprado a moça anos antes; o sujeito era rico e já tinha 3 esposas e muitos filhos), com quem nunca tinha tido muito contato. 

Zarah acaba sendo sua companheira de jornada, assim como um rapaz branco da sua idade, vizinho que cresceu junto). Como Zarah é negra, e casais interraciais são alvo preferido para ataques, Lauren se disfarça de homem fingindo que é par dela. O fato delas estarem acompanhadas de um homem branco (Harry), faz a empreitada de fuga menos arriscada, se é que se pode dizer isso.

O trio resolve ir para o Norte a pé (não há meios de transporte disponíveis) a fim de encontrar trabalho pago com dinheiro e condições de vida melhores. No caminho, vão encontrando outras pessoas em situação igualmente desesperadora, incluindo um casal com um bebê, duas irmãs com o filho de uma delas, uma mãe sozinha com a filha pequena, um pai solo com seu filho (esses último 4 são escravos fugitivos de cidades privatizadas e também com hiperempatia) e um médico.

Como eu disse, é uma distopia tão assustadora por conta do seu realismo. Dá para imaginar facilmente todas as cenas acontecendo sem nenhuma dificuldade.

O grupo vai construindo uma cultura de confiança mútua e se protegendo como pode desse mundo hostil. Lauren vai compartilhando suas ideias sobre Deus que alguns aceitam com mais facilidade do que outros. Ela quer achar um lugar para começar a sua comunidade de seguidores.

A jornada é cheia de perigos, conflitos, desafios e absurdos.

Esse livro tem uma continuação “Parábola dos talentos” que já está na minha lista.

A notícia boa é que esse clássico incrível tem versão em português; você pode comprar clicando aqui.

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