Telhado de vidro

Você acha que uma empresa (ou profissional) pode dizer que é ética mesmo que de vez em quando cometa alguns deslizes, como usar um programinha pirata ou deixar de dar uma nota fiscal? Esse é o tema da minha coluna dessa semana no AcontecendoAqui. Leia o resto deste post e veja se você concorda.

cd.jpg

ÉTICA PATÉTICA

05/12/07 Se a gente perguntar a qualquer executivo sobre a questão da ética na empresa dele, existe uma probabilidade muito grande do sujeito ser capaz de jurar sobre a Bíblia que esse princípio constitui o valor mais importante do negócio (assim como a inovação, a preocupação social e com o ambiente, a valorização do capital humano e blá, blá, blá).

Minha consultoria trata do autoconhecimento da organização, e, não raro, acontece que a preocupação com a ética não está no seu DNA, por mais que seus gestores jurem o contrário (o método não se deixa enganar por discursos bonitos). Mediante evidências, eles acabam admitindo um jeitinho aqui, outro ali…

Sempre digo que ser sincero é mais barato, fácil e eficiente. Mas, e nesse caso, o que fazer? Sair por aí dizendo que é desonesto, que faz negócios escusos, que topa tudo? Às vezes, os deslizes são sérios, apesar de socialmente toleráveis pela sociedade brasileira, como o uso de uma cópia adicional não autorizada de um software, por exemplo. É errado, é crime, todos sabem, mas nem sempre isso quer dizer que a empresa aceite propina e ande metida em negociatas. Há muitos empresários que se acham éticos e honestíssimos, mas sonegam impostos em todas as oportunidades possíveis, mesmo que muito discretamente. Então, como proceder num caso desses?

Apoiada em experiências diversas, tenho algumas dicas. Bom, uma vez reconhecida essa particularidade, a empresa tem que definir claramente a postura que vai adotar. Ela pode decidir:

  1. Acabar com todas as práticas que não possam ser publicamente consideradas éticas e se empenhar em eliminá-las por completo, ou seja, nenhum esqueleto no armário será tolerado.
  2. Definir que algumas práticas não são tão graves quanto outras e admitir apenas deslizes considerados “pequenos”; um ou outro produto/serviço sem nota fiscal, por exemplo, um modesto caixa dois, ou alguns softwares sem licença não serão consideradas prioridades a serem tratadas.
  3. Não possuir nenhum tipo de escrúpulo, aceitando todo e qualquer comportamento heterodoxo, desde que seja do conhecimento dos gestores e faça parte da estratégia da empresa, como, por exemplo, postos que vendem combustível adulterado ou agências de propaganda que lavam dinheiro de políticos.

Seja qual for a decisão, a empresa tem que estar consciente de que não pode sair por aí dizendo que é ética e enfatizando esse aspecto como se isso fosse um atributo essencial. No primeiro caso, da empresa que decide não tolerar mais deslizes, o que se define é a manifestação de uma intenção, que pode levar anos até obter algum êxito, principalmente se o “jeitinho” faz parte da sua cultura. E intenção não é fato, nem atributo, muito menos essência.

No segundo caso, basta um olhar mais atento para que se perceba contradições; é o famoso “telhado de vidro”. Não convém chamar atenção demais para o tema. Já no terceiro caso, discrição é tudo. Ética deve ser palavra proibida nas comunicações da organização.

Para os cidadãos de qualquer cidade, estado ou país, é importante que todos os empreendimentos sejam modelos éticos e de consciência social. Infelizmente, a realidade é diferente, e não está em poder de um consultor mudar a identidade de uma empresa. Se ela pratica delitos, certamente é por escolha de seus gestores, seja ativamente ou por omissão. Bandas na favela, corais infantis, campanhas publicitárias geniais, códigos de ética com encadernação caprichada, marketing ambiental ou balanços sociais, nada disso pode contra a força do DNA de uma corporação. Certamente a decisão recomendada por qualquer profissional é a de número um, que prega tolerância zero, mas espetáculos teatrais com maus atores são piores do que nenhum espetáculo.

Assim, não cabe ao consultor realizar a mutação genética necessária (até porque não acredito que exista ainda uma técnica capaz de tal proeza), mas isso não significa que ele não possa fazer nada a respeito. Em situações como as acima apresentadas, a recomendação para a gestão da identidade corporativa da empresa em questão é evitar a qualquer custo a menção à palavra ética ou assuntos relacionados ao tema.

Certamente devem haver outros atributos que possam ser valorizados e enfatizados, focando o posicionamento em um diferencial verdadeiro e que atenda a seu público de interesse (que em algumas ocasiões, inclusive compartilha da mesma, digamos assim, “filosofia de negócios”). Então, por mais paradoxal que pareça, sim, é possível que uma empresa desonesta possa agir com honestidade na gestão de sua identidade corporativa.

Algo assim como ocorre com camelôs que vendem produtos contrabandeados e são pegos em flagrante pela polícia na presença de muitos de seus clientes. Uma vez libertados, lá estão eles vendendo novamente os mesmos produtos, com igual desenvoltura. Problemas com a lei fazem parte de sua rotina e seu público não vai lá pensando em encontrar ética. O foco é o preço – uma vez cumprido o trato, as partes saem muito satisfeitas, pois a empresa entrega o que promete. Consumidores de drogas ilegais e grifes falsificadas são exemplos semelhantes. De nada adianta fazer campanhas ressaltando retidão e princípios, não é isso que seduz os clientes.

Assim, muito cuidado com a ênfase na palavra ética nas comunicações da empresa. Uma vez que a associação é feita, é preciso bancar e ter a máxima segurança de que não há sequer uma prática ou ação que contradiga esse atributo. Cliente que quer ética é atento e não perdoa ser enganado. E infelizmente, no Brasil, esse atributo é para muito poucos.

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

1 Response

  1. 5 dezembro 2007 at 8:05 pm

    Lígia, belo artigo, como sempre. Realmente é uma discussão polêmica, complicada. Às vezes penso naqueles que ficam escandalizados quando vêem corrupção no Executivo, no Legislativo e criticam de boca cheia a atitude deles, mas não olham em seu redor, na sua empresa, o que fazem.

    Por outro lado, ser plenamente ético hoje em dia é realmente muito difícil, complicado e, também, caro. Tudo tem seu custo. É por isso que quando falo em ética, eu e minha empresa nos abstemos… pelo menos por enquanto 😉

Leave A Reply

* All fields are required