A mulher do tigre

Quanta surpresa num livro de bolso desgastado e cheio de orelhas! Achei essa joia num sebo por €1 e me chamou atenção porque dizia que ganhou um prêmio de ficção em 2011 no Reino Unido. Lá fui eu mergulhar nas páginas do “The tiger’s wife”, de Téa Obreht. 

A autora nasceu na Sérvia em 1985 e fugiu com a mãe e avós durante a guerra, em 1990. Eles se refugiaram no Chipre, depois no Egito e, em 1997, os avós retornaram a Belgrado. Mas ela e a mãe decidiram viver nos EUA, onde estão até hoje. 

Entender esse contexto é importante por causa da história. A protagonista é uma médica, Natalia, que está indo com sua amiga de infância Zora, também médica, aplicar vacinas em crianças num orfanato. No caminho recebe a notícia de que seu avô está morto num hospital numa cidade próxima e seu corpo está sendo embarcado para casa, porém sem seus pertences. A causa da morte e as circunstâncias não está clara.

Natalia nasceu em um país das Balcãs (não identificado na história) e foi criada pelos avós e pela mãe, que sempre morou com eles. Sua ligação com o avô (também médico) é fortíssima; exceto um período de afastamento na adolescência, sempre foram os melhores amigos.

Ao mesmo tempo em que conta a sua jornada entre guerras, pois passou parte da vida tentando sobreviver no meio do caos da incerteza geopolítica, a moça recorda as histórias que seu avô compartilhava com ela, em seus passeios diários no zoológico para ver o tigre.

Uma dessas histórias trata da infância dele, em um vilarejo distante e isolado, com pouquíssimos recursos. Seu avô foi um órfão adotado por uma boa senhora e seu principal herói era o farmacêutico da vila. A narrativa nos transporta para o passado cheio de lendas, mas também é muito atual (principalmente quando a gente pensa que está agora passando por uma guerra).

O título, a mulher do tigre, vem da história de um tigre que vivia num zoológico bombardeado numa das muitas guerras; depois de dias preso e sem entender o que estava acontecendo, ele consegue fugir, bem magro e frágil. Por não ter aprendido a caçar, sai caminhando a esmo até, depois de alguns dias,  passa a viver nos arredores da tal vila onde o avô de Natalia nasceu. 

Como o animal não é nativo do local e nunca foi visto antes, os moradores acreditam tratar-se de um demônio que vai levá-los todos à morte. 

Todos ficam apavorados até que, pela descrição, o menino consegue identificar o tigre Shere Khan desenhado no Livro da Selva de Rudyard Kipling (que a gente conhece pelo personagem Mowgli), que ele ganhou do farmacêutico e sempre carrega consigo.

Os personagens da vila são todos complexos e com histórias de vida bem pitorescas; inclusive a mulher do açougueiro, uma menina surdo-muda que, aparentemente, faz amizade com o tal tigre. Com a morte do açougueiro pelo animal, ela passa a ser chamada “a mulher do tigre”.

Tem também um personagem que permeia toda a história de vida do avô, que é um homem que nunca morre ou envelhece. Eles se cruzam várias vezes em situações diversas. 

Como médicos, tanto Natalia como seu avô são bastante céticos com relação a mistérios. Mas o fantástico frequenta a trama com muita elegância, sempre mantendo um mistério interessante, a la Murakami. A própria autora diz que é uma fábula sobre a morte, já que os dois protagonistas, Natália e seu avô, são médicos.

Olha, o livro não ganhou prêmios à toa não e a autora, apesar de muito jovem, é mais que brilhante. Buscando o próximo livro dela, Inland, descobri que já foi indicado a outro prêmio. Que maravilha!

Daquelas obras em que você se muda de alma e cuia para outro lugar no espaço-tempo e passa lá uns bons dias. Recomendo para quem está precisando de umas férias mentais.

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