Transformar a percepção faz toda diferença

Deviate: the creative power of transforming your perception*, do neurocientista Beau Lotto, é uma grata surpresa.

A premissa do livro é relativamente simples: se você conseguir entender como seu cérebro funciona, pode alterar sua percepção do mundo, ou seja, a maneira como você vê e interpreta as coisas. Isso afeta tudo, inclusive a forma como você cria novas ideias.

O autor realmente se esforçou para usar recursos gráficos e tipográficos para tornar a forma como parte relevante do conteúdo num livro totalmente preto/branco. O resultado ficou muito interessante; não diria surpreendente porque já conhecia a maioria dos exemplos e técnicas utilizadas. 

Beau Lotto, professor de neurociência em universidades de Londres e New York, é fundador de um laboratório de pesquisa chamado Misfit (desajuste, não-conformismo) e parece ser um cérebro eternamente curioso e questionador. Dá muita vontade de conhecer o moço pessoalmente.

Lotto explica que nosso cérebro foi concebido para resolver incertezas com a maior rapidez possível, por uma questão de sobrevivência. E que essa massa cinzenta, como já sabemos, não tem acesso direto ao mundo exterior. Ela só consegue receber sinais elétricos que os sensores (nossos sentidos) mandam. Para o cérebro, aquela paisagem linda que você vê são apenas sinais elétricos que ele interpreta conforme as informações de referência que ele já carrega em sua “biblioteca” (que também podemos chamar de repertório).

Para não ter que processar todos os sinais elétricos que recebe toda vez e ter que trabalhar muito (apesar de representar apenas 3% do peso do corpo, o cérebro consome até 25% de toda a nossa energia), ele só pega uma amostra (mais ou menos 10% da informação total), compara com o que tem dentro da biblioteca e deduz o resto.  

Assim, a maneira como a gente percebe o mundo depende muito do que tem na nossa “personal biblioteca”. E a maneira como a gente interpreta os sinais que o cérebro recebe depende de muitos fatores; é uma coisa extremamente complexa. E muitas vezes, interpretamos errado (sabendo disso) porque temos poucas referências (ou seja, uma biblioteca pobre).

Ele conta uma história bem interessante para ilustrar isso. Você está numa rua escura, e ao longe há um poste de iluminação pública. Você vai caminhando para lá e vê alguém abaixado, procurando alguma coisa. Você pergunta para a pessoa o que ela está fazendo e ela responde: “Procurando minhas chaves”. Você imediatamente se oferece para ajudar e pergunta: “Onde exatamente ela caiu?”. A pessoa responde: “Naquele gramado, a uns 100 metros daqui”. Você: “Ué, mas então por que raios você está procurando aqui?”. A pessoa: “Porque é o único lugar onde consigo ver”. A ideia da ciência é justamente criar postes de luz em todos os lugares.

Lotto diz que as informações não têm nenhum significado intrínseco; nosso cérebro é que dá sentido a elas. A realidade, de acordo com o filósofo George Berkeley, são ideias impressas nos nosso sensores.

O autor usa uma metáfora bem interessante: nosso cérebro está dentro de nossa caixa craniana, que é como se fosse um trailer (aquelas casas com rodas). As janelas são os nossos sentidos. O cérebro não pode sair nunca para ver como são as coisas de verdade. Só pode olhar pelas janelas. Ele pode viajar pelo mundo inteiro, mas sem sair de dentro do veículo. Sendo que as “janelas” que desenvolvemos, são as que se mostraram as mais importantes para a nossa sobrevivência.

A gente consegue perceber muito menos cores que alguns crustáceos, por exemplo. O Stomatopods, da família das lagostas, tem 16 pigmentos visuais (substância que transforma luz em eletricidade para os receptores do cérebro); o ser humano tem apenas três. Os pássaros conseguem “ver” a estrutura eletromagnética do céu, de acordo com o ângulo do sol. A evolução de cada ser vivo seleciona o desenvolvimento dos sentidos que são mais importantes para a sobrevivência. Assim, dá para ver como as janelinhas do nosso trailer são pequenas e limitadas e, por isso, é tão fácil de enganar nosso cérebro usando o que a gente chama de armadilhas perceptivas.

Outra coisa interessante é como o cérebro constroi o significado para esses sinais elétricos que ele recebe; é tudo baseado em experiências passadas. Ou seja, a maneira como recebemos e organizamos as nossas percepções no passado determina como vamos interpretar todas as informações que serão recebidas no futuro. Assim, quanto mais a gente interage com o mundo e com as outras pessoas, quanto mais a gente se força a fazer o exercício da interpretação, mais a nossa biblioteca vai ficando rica e mais temos material para interpretar o futuro. E a sobrevivência em ambientes diferentes, onde ainda não temos material de base para interpretar, força o nosso cérebro a inovar, desenvolver novos caminhos, criar mais “gavetinhas” de informação. Se você dá um contexto complexo ao cérebro, ele é obrigado a se adaptar e a interpretar de maneira complexa. Nosso cérebro só trabalha de verdade quando indentifica mudança, diferença ou contraste com o que ele já tem.

Outra informação curiosa: o cérebro usa os princípios da estatística para interpretar os fatos. O que é mais frequente, vai ser mais usado, e assim recursivamente. Por isso é que precisamos tanto quebrar esse ciclo de repetição, apresentando a ele coisas que ele vai precisar trabalhar mais para interpretar. Assim, fica fácil de entender porque as pessoas normalmente pessimistas são sempre cada vez mais pessimistas. E as otimistas, com o viés correspondente. A cultura também tem um peso enorme em como nós vemos o mundo. A verdade é que a gente quase nunca olha pra fora, só para dentro.

Então, já que todas as interpretações que a gente faz vêm de dentro, como diz Lotto, e o cérebro não vê diferença entre o que é real e o que é inventado, por que a gente não pode inventar interpretações que nos facilitem a vida?

Voltando à premissa principal do livro, em que o autor defende que, se a gente entender como o cérebro funciona, a gente também consegue mudar o “futuro do nosso passado”, como ele diz, mudando os significados das informações que estamos tendo no presente e forçando a mudança estatística de interpretação.

Ele dá muitos exemplos de estudos científicos no livro, em que puderam ser constatadas mudanças físicas nos cérebros pesquisados.

Mas vou dar um exemplo pessoal que penso que se encaixa no que ele está falando. É claro que não é lição para ninguém, nem conselho, nem estudo. Apenas uma experiência pessoal que talvez possa ajudar a esclarecer.

Sempre, desde que me conheço por gente, devoro livros. Durante as crises normais da adolescência, era uma maneira de fugir do mundo. Eu viajava, conhecia pessoas, aprendia coisas, entendia algumas ideias, tudo sem sair de casa, só folheando papel. Também assisti muita televisão: Mulher Biônica, Poderosa Ísis, Jennie é um gênio, Mulher Maravilha, As Panteras, Trovão Azul (em que uma mulher pilotava o helicóptero com esse nome). Isso moldou minhas estatísticas para o resto de minha vida, pois sempre me senti como uma delas.

Mais tarde, quando tive problemas como todo mundo e quando sofri assédios morais dos mais variados tipos no curso de engenharia (e não só de professores e alunos; o povo em geral, inclusive familiares, tinha dificuldade em aceitar uma “moça de família” numa turma com 49 homens há mais de 30 anos), sempre imaginei que estava num filme e essa era parte em que a protagonista tinha que enfrentar os vilões. Mas logo viria outro capítulo onde ela teria alguma ideia bacana que resolveria tudo; ou apareceria uma oportunidade que ela iria aproveitar para sair das dificuldades.

Isso aumentou muito minha resiliência e praticamente saí incólume do curso, pronta para enfrentar os dragões do mercado de trabalho (que não eram menores). A questão é que às vezes a gente não consegue mudar os fatos, mas se conseguirmos mudar a nossa percepção deles, pode fazer toda a diferença.

Ainda hoje, morando num lugar com uma cultura tão diferente cuja língua ainda estou longe de dominar totalmente, a fantasia da heroína ainda ajuda muito. As pessoas reclamam muito dos dias feios e dos invernos escuros e frios. Para mim, não existe dia feio. Existe direção de fotografia ruim.

Em qualquer situação, eu sempre imagino que estou num filme ou num livro. Sou a protagonista, a diretora, a figurinista, a diretora de arte, a co-roteirista (pois não decido tudo, mas posso dar meus pitacos) e também faço a trilha sonora. Experimente você também; tudo passa a ficar mais interessante.

Enfim, provavelmente isso não serve para mais ninguém, mas esse desvio de percepção tem me ajudado, não apenas a sobreviver, mas também a ter mais ideias e me adaptar melhor.

Para fechar, vou deixar uma frase do filósofo George Berkeley que resume tudo: “Existir é perceber”.

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*Tradução livre: “Divergente*: o poder criativo de transformar sua percepção”; Deviate é um pouco difícil de traduzir. Usar “desviado” ficaria muito esquisito. Enfim, é sobre algo que não segue o caminho esperado.

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