A canção de Achilles

Começo do mês passado, participei de um Hackathon em Mannheim e conheci muitas mulheres maravilhosas. Fizemos vários grupos e uma delas, quando pegou o trem na volta, postou a capa do livro “The song of Achilles”, de Madeline Miller. A menina, indiana, disse que estava gostando muito, apesar do vocabulário um pouco complicado.

Então eu fiz o quê? A única coisa possível, que foi comprar o livro na Amazon.

E quer saber? É a história de amor mais bonita e tocante que eu já li na vida. Por alguns dias vivi na Grécia antiga, junto com deuses e semi deuses. A autora é professora de Literatura Clássica na Brown University e dá aula de latim, grego e Shakespeare; ela levou 10 anos para completar essa obra prima.

Mas vamos à história, que é narrada por Patroclus, filho de um rei não muito rico ou influente, na Grécia antiga. 

Por causa de sua pouca importância, não conseguiu “comprar” uma bela princesa e tratava a mãe dele como um ser inferior (ser mulher sempre foi difícil, mas naquela época, nós valíamos menos que objetos se não fôssemos atraentes). 

Bruto e grosso, irritava-se muito porque seu único filho era mais parecido com a mãe: sensível, educado, contido. As provações eram constantes e o sujeito era completamente sem noção. Tanto que que fez o pobre, com apenas 9 anos de idade, disputar a mão de Helena junto com outros cavaleiros adultos (na verdade, um leilão que o pai dela fez para ver quem dava mais ouro e riquezas pela mulher). 

A situação foi, obviamente, humilhante (Menelaus ficou com o “prêmio”) e o menino sofreu bullying pelos garotos do seu reino. A um ponto que, quando tentou se defender de um ataque, acabou acertando uma pedra no valentão e acabou, involuntariamente, matando-o.

O pai aproveitou a oportunidade para exilar o filho. E o rei que aceitava exilados (mediante pagamento, claro) era Peleus, pai de Achilles. 

A mitologia grega é muito criativa; como todas as religiões, ela usa narrativas para explicar o que (ainda) é inexplicável e manter o status quo (quem está no poder, continua; quem não está, se conforma e espera uma compensação depois da morte). 

Como o mundo é um lugar cheio de absurdos e longe de ser justo, a mitologia responsabiliza deuses pelos acontecimentos. Só que esses deuses são iguais aos humanos: vaidosos, ciumentos, orgulhosos e cheios de defeitos. As únicas diferenças são que eles são imortais e têm superpoderes.

Voltando à história, Peleus, o rei, fez um acordo com Zeus, o deus supremo, e conseguiu que Thetis, a deusa do mar, lhe desse um filho, mesmo a contragosto (estupro, mesmo de deusas, parecia ser coisa comum na época).

Achilles então, quase da mesma idade que Patroclus, era um semideus. Humano e mortal, mas com talentos e poderes muito além dos seres humanos comuns. Lindo, forte, com sensibilidade para a música e poesia, estava destinado, segundo as profecias, a ser o maior guerreiro do seu tempo. 

Peleus parecia ser um rei de boas (não era mais metido que os outros) e amava seu filho mais que tudo, além de tratar muito bem todos os exilados. 

Aos poucos, timidamente, Patroclus e Achilles foram se aproximando e fazendo amizade. E ela se tornou um amor maior que tudo.

Mas o mais lindo dessa história é que a relação dos dois não era como esses romancezinhos bobos em que você pensa: ah, se o casal sentasse meia hora para conversar como dois adultos, em vez de ficar fazendo interpretações equivocadas, o livro nem existiria. 

O vínculo dos dois era feito de um amor puro e genuíno; com o máximo respeito, sem ciúmes, sem posse, sem discussões inúteis.

A grande questão sempre foi o destino de Achilles. Toda a humanidade e sensibilidade que ele compartilhava com Patroclus, meio que sofria danos quando ele se encontrava com sua mãe, que odiava seu companheiro com todas as forças. A mãe queria um guerreiro glorioso, épico, famoso por toda a eternidade. E Patroclus não cabia nesse cenário.

Os dois foram educados em uma caverna por um centauro muito sábio (adorei essa parte) e viveram juntos por muitos anos. 

Isso rolou até pouco depois dos 20 anos, quando Helena, a rainha de Sparta (aquela mesma do início da história) é raptada por Páris, o rei de Tróia, e começa uma guerra sangrenta que vai durar mais de uma década.

Eita, mas estamos falando de guerra? Sim! E Achilles não é destinado a ser o maior guerreiro de sua geração? 

Pois então, só que nessa hora os pais dele amarelaram e acharam que ainda era cedo. Esconderam o moço numa Ilha (Patroclus descobriu e foi atrás do seu amor), mas não durou muito tempo.

Os reis Odysseus, Agamemnon e Menelaus (o marido de Helena) moveram mundos e fundos até encontrar Achilles e recrutá-lo para a guerra. 

E aqui, o que era só teoria, virou uma prática assustadora. Achilles se deu conta de que seu talento era matar pessoas. Ele ficou assustado, claro, mas era muito orgulhoso porque se sentia o escolhido, o prometido, o privilegiado, cujo destino já estava selado e que todos lhe deviam render homenagens.

Mesmo não lutando, Patroclus foi para a guerra com seu amor; o seu apoio era incondicional. Apesar de achar a guerra um horror e preferir que Achilles não lutasse, não queria ficar longe dele. O que aliás, se revelou a salvação do moço, pois sempre foi Patroclus que baixou a bola do príncipe vaidoso dos seus poderes quando o orgulho lhe subia à cabeça.

E eis que começa a guerra e seus horrores, e o tema passa a ser o que move o universo masculino: vaidade e poder.

A vaidade é a única justificativa para Achilles fazer parte dessa guerra (que, vamos combinar, não faz o menor sentido; ninguém nem ao menos tem certeza se a Helena foi mesmo raptada ou se fugiu com Páris de livre e espontânea vontade). 

Achilles quer ser lembrado por toda a eternidade como um grande guerreiro, mesmo que isso custe a vida de pessoas inocentes, que cause sofrimento e dor, que ele tenha que compactuar com monstruosidades, ou mesmo que ele morra no final. Para esse semideus guerreiro, nada disso é mais importante do que a sua vaidade, a glória, as homenagens, o destino. 

E Patroclus consegue ver o homem que existe por baixo desse orgulho cego e ir mostrando a ele o que é mais importante sempre: a humanidade. 

Uma das cenas mais lindas é quando Patroclus arrisca a própria vida e até a honra de Achilles para salvar uma moça de seria dada como escrava sexual para Agamemnon (um velho escroto e nojento). Achilles fica furioso com a traição, no que Patroclus diz que o ama e o respeita, mas, nesse caso, o guerreiro estava errado. A vida de uma pessoa sempre será mais importante que um capricho. 

Achilles finalmente entende, olha nos olhos do companheiro e diz “Você é muito melhor que eu”. 

Para um semideus vaidoso admitir isso, é porque o sentimento entre eles é muito profundo.

O final é de chorar, posso garantir. O diálogo final entre Patroclus e Thetis é de arrepiar.

Inesquecível como poucos livros que li e mais não posso dizer para dar spoiler. 

A história não dá detalhes sobre o famoso Cavalo de Tróia (Achilles e Patroclus não participaram do empreendimento) e nem fala sobre o famoso calcanhar.

Só peço para você considerar com carinho fazer uma visita a essa que é considerada uma releitura contemporânea da Ilíada de Homero. Bom demais.

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