A ilusão do conhecimento

Já tinha lido sobre a importância do trabalho colaborativo para o desenvolvimento da raça humana em livros e textos do Yuval Harari, mas “The knowledge illusion: why we never think alone”, dos cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach trata especificamente disso. E olha, é um soco na cara dos mais bem dados (e merecidos).

A dupla começa falando coisas um pouco óbvias, mas que não custa lembrar: nenhum ser humano consegue conhecer tudo sobre todas as coisas. A gente sabe disso, mas se esquece muito facilmente. O fato é que somos muito mais ignorantes do que nos damos conta. 

O que acontece é que a gente acha que entende de um determinado tema, mas não entende. Ao ouvir (ler ou assistir) uma explicação, o que o nosso cérebro faz é, no meio de tanta informação nova, tentar identificar alguma ideia, palavra ou conceito familiar. Feito isso, o cérebro dá o assunto por entendido e segue em frente. É o famoso “entendi, mas não consigo explicar”. 

Na verdade, não entendeu; o que aconteceu é que a pessoa pescou algumas palavras que ela conhecia e já se sentiu menos desconfortável (acontece muito quando a gente lê/ouve em outra língua), mas não conseguiu compreender a essência. É o tal do analfabetismo funcional. Você se identificou? Não se preocupe, todo mundo é assim; só variam os assuntos. Nossos filtros internos acham as palavras-chave que nos interessam e descartam o resto; a familiaridade nos traz conforto e a ilusão do conhecimento.

A outra questão que tira a dimensão de quão ignorantes somos é que a gente confunde o acesso à informação com a informação propriamente dita. Nossa mente é desenhada para acreditar que a linha que separa o que eu sei com o que o outro sabe quase não existe. O que está dentro do nosso cérebro é o que a gente de fato sabe e domina. Mas em tempos de internet a gente acaba acreditando que tudo o que está disponível na rede também faz parte do nosso conhecimento. Não faz; só o fará quando esse conhecimento for acessado e realmente compreendido. 

Um dos testes para mostrar como a gente acha que sabe das coisas mesmo quando não sabe chama-se IoED — Illusion of Explanatory Depth — e consiste em perguntar para uma pessoa, por exemplo, o quanto ela sabe sobre o funcionamento dos zíperes, de 1 a 7. Faça você também. Boa parte das pessoas, como está bem familiarizado com o objeto, dá notas altas. 

O próximo passo é usar uma folha em branco para explicar em detalhes o funcionamento do negócio. Aí é que a gente se dá conta de que não sabe tanto quanto pensava. Quando se pede a nota novamente, os números caem bastante. Vale para qualquer objeto, evento histórico, conceito político ou cultural, enfim, a escolha é livre. Somos ignorantes em tudo.

Reconhecer a dimensão da nossa ignorância e os limites do nosso conhecimento sobre as coisas abre nossas mentes para as ideias das outras pessoas e, por conseguinte, acaba por ampliar nosso entendimento.

O problema de não reconhecer quão pouco sabemos é que o mundo está ficando mais e mais complexo em níveis exponenciais. E, não sabendo lidar com essa complexidade, o ser humano tende a buscar o conforto em dogmas, rótulos e receitas prontas. É claro que não dá muito certo, como estamos vendo nesses tempos de radicalismos em todos os níveis. Quanto mais complexo, mais apavorante; e mais as pessoas travam e não pensam. 

As pessoas adoram heróis, porque eles são simples, têm boa aparência e, não raro, têm superpoderes. Nos humanos, a gente tende a atribuir o superpoder da genialidade colocando, por exemplo, todo o mérito de um árduo trabalho em equipe para uma só pessoa.  Mesmo os mais brilhantes cientistas são tratados como se trabalhassem numa bolha, sem a colaboração de ninguém, usando zero conhecimento desenvolvido anteriormente e não pudessem contar com a ajuda de laboratórios de pesquisa, equipes de estudantes e colegas que contribuem com opiniões e críticas.

Mas, na vida real, ninguém trabalha no vácuo. Mesmo dentro de uma área específica, ninguém domina todo o conhecimento necessário.

Vejam: o homem foi à lua, desenvolveu equipamentos incríveis, inteligência artificial, robôs, engenharia genética e tudo mais. Mas será que o ser humano é realmente tão genial? 

Pegue uma pessoa qualquer, mesmo que muito inteligente, mesmo muito especialista no assunto (por exemplo, um engenheiro aeronáutico) e peça para ele construir um avião desses atuais, só que sozinho.   

Nem o melhor e mais estrelado dos profissionais consegue, pois ele não tem o conhecimento em todas as áreas que o empreendimento precisa. E isso vale para praticamente tudo. Mesmo um cientista ganhador do Nobel não desenvolve solitariamente uma vacina; um gênio da arquitetura não tem como construir um prédio sem muita e variada ajuda. Os saberes são diversos e quanto mais complexa a coisa, mas conhecimentos que não cabem numa cabeça só são necessários.  

E mais importante: a contribuição que nós fazemos como indivíduos para que esse todo funcione depende mais da nossa habilidade em trabalhar com os outros do que da nossa inteligência ou conhecimento.

A inteligência individual é superestimada. E não sou eu quem está dizendo.

Quando múltiplos sistemas cognitivos trabalham juntos, a inteligência resultante do grupo vai muito além do que a soma das inteligências individuais. 

Outra coisa interessantíssima é sobre a maneira como a gente pensa com relação à lógica causal. Há basicamente dois tipos de perfis: os intuitivos e os deliberativos.

A lógica causal serve à infraestrutura do pensamento; mas seres humanos não pensam normalmente em termos lógicos. 

O pensamento intuitivo é rápido, emocional e espontâneo. Se peço para alguém dizer o nome de um animal começando com a letra “e”,  a maioria vai falar “elefante”como a primeira coisa que vem à mente; não requer esforço ou concentração. A intuição é decisiva e não duvida; resolve tudo rapidamente e com paixão. A intuição depende da construção mental e das experiências anteriores de cada indivíduo.

Já o pensamento deliberativo exige mais raciocínio intencional; ele não decide rápido. Ao contrário, hesita. Na deliberação, é como se, pensando sozinha, a pessoa conversasse com outra. Na deliberação, duvida-se das conclusões rápidas, questiona-se se realmente a resposta está correta.

Quer ver um teste? Um taco e uma bola juntos custam R$ 11,00. O taco custa R$ 10,00 a mais que a bola. Quanto custa a bola?

Você respondeu R$ 1,00? Está em boa e grande companhia. Mas essa é a resposta intuitiva e errada. 

Pense: se a bola custasse R$ 1, o taco teria que custar R$ 10 a mais, portanto, R$ 11. E o resultado seria R$ 12. A resposta certa é R$ 0,50 ( o taco custaria R$ 10,50).

Poucas pessoas (as de perfil deliberativo) se dão ao trabalho de fazer a conta, pois a resposta parece óbvia.

Aqui um outro exemplo: num lago, a área da vegetação de plantas aquáticas que cobrem a superfície dobra a cada dia. Se o lago leva 48 dias para ser coberto, em quantos dias ele está na metade? 24? Tem certeza? Coloque aí seu pensamento deliberativo para funcionar, gente!

Porque o mundo é complexo demais e porque há muitas e variadas situações e problemas a resolver, nenhum dos perfis é perfeito; ambos são incertos, incompletos e imprecisos. É humanamente impossível ter todas as informações necessárias sobre uma determinada questão; é preciso escolher algumas variáveis mais importantes e tomar as decisões com base nelas, ignorando as demais.

Mas, para fins de colaboração, os deliberativos são melhores, pois duvidam de sua própria capacidade e pedem ajuda (mesmo que seja para conferir). Quanto mais noção a gente tem da nossa própria ignorância, mais a gente está aberto para aprender e, mais importante, colaborar.

Os autores lembram que, de todas as espécies, somente o ser humano é capaz de interpretar as intenções do outro e colaborar. Uma curiosidade: entre os primatas, os mais sociáveis (portanto, os que mais colaboram), são os que têm cérebros maiores, pois a socialização exige desenvolver funções neuronais complexas.

Os seres humanos têm outra habilidade que os torna especiais: eles compartilham conhecimento intencionalmente. Inclusive se organizam e desenvolvem métodos para transmitir o conhecimento adquirido para as outras pessoas. 

Segundo Sloman e Fernbach, essa é a característica mais importante e diferencial do ser humano, que o distingue de todas as demais espécies: a capacidade de armazenar e compartilhar conhecimento. Só por isso conseguimos avançar a cada nova geração. Não é que os indivíduos fiquem mais inteligentes; mas o grupo, com certeza, fica.

E mais os seres humanos mais inteligentes são aqueles capazes de entender, se comunicar e compartilhar conhecimento com outras pessoas.

Muito do entendimento humano consiste em ter consciência de que o conhecimento está fora. Um entendimento mais sofisticado usualmente consiste em saber onde encontrar esse conhecimento. Mas somente os verdadeiros eruditos têm esse conhecimento disponível em suas próprias memórias.

O livro traz ainda discussões sobre o conhecimento e a tecnologia, sobre a definição de inteligência e até insights (pelo menos para mim) sobre liderança. 

Olha, o melhor livro que eu li em anos. Verdade. Vai que eu garanto.

1 Response

  1. Zeca Virtuoso
    Responder
    30 junho 2020 at 7:22 pm

    Muito bom o artigo, prezada Lígia!
    Somos limitados, com certeza. E por mais que saibamos muito de algo, sabemos pouco ou quase nada, porque invariavelmente, os fenômenos são complexos e precisamos de outros campos de saberes, de outras interlocuções, para compreendê-los melhor. Humildade sempre!! Abraço fraterno

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