User Friendly

A princípio, “User friendly: how to hidden rules of design are changing the way we live, work, and play”, (tradução livre: “User Friendly: como as regras secretas do design estão mudando a maneira como vivemos, trabalhamos e jogamos”), de Cliff Kuang e Robert Fabricant seria um livro técnico que só interessaria a designers e desenvolvedores, mas penso que todo mundo devia saber um pouquinho sobre como os objetos que usamos no dia-a-dia evoluíram do ponto de vista da amigabilidade. 

Já começa que não consigo traduzir user friendly ao pé da letra: seria algo como amigável ao usuário, mas acho isso horrível e não traduz a ideia. O americano Harlan Crowder, programador da IBM, foi uma das primeiras pessoas a usar esse termo para se referir a um computador, ainda nos anos 1960. Ele não se conformava em ter que perfurar cartões (eu já fiz isso e muito, quando era estudante de engenharia) e esperar o mainframe processar o código durante horas até descobrir que deu tudo errado porque você se esqueceu de uma vírgula ou um sinal. Nesse sentido, user friendly significa que o uso de determinado equipamento é simples, intuitivo, amigável, acessível a qualquer pessoa e que seja robusto no caso de operação errada.

Os autores, Cliff Kuang, um jornalista premiado e especializado em User Experience e editor das maiores e mais importantes revistas de design dos Estados Unidos e Robert Fabricant, ex diretor criativo da lendária Frog Design, contam como tudo isso começou e porque as pessoas começaram a se dar conta de que era importante levar essa questão a sério.

É claro que, intuitivamente, já havia profissionais pensando a esse respeito, principalmente os designers industriais que surgiram após a Primeira Guerra Mundial, como  Henry Dreyfuss, responsável pelo design de boa parte dos produtos de consumo a partir dos anos 30, nos EUA. Ele já entendia que as coisas, mais do que belas, deveriam ser fáceis de limpar e ser intuitivas no uso. 

FEEDBACK

Kuang e Fabricant contam que a maior influência dessa abordagem veio por causa de acidentes muito graves, como o da usina nuclear Three Mile Island, em 1979, e a morte de dezenas de pilotos durante a Segunda Guerra. No caso da usina, os operadores não tinham feedback sobre o que estava acontecendo. Tipo: eles apertavam o botão para abrir uma válvula, mas não tinham a confirmação de que ela realmente tinha sido aberta. Além disso, todos os instrumentos estavam misturados, dificultando a visualização.

No caso dos pilotos, eles se enganavam porque o painel de controle também era mal desenhado. Meu pai era mecânico de avião e me lembro de que ele sempre dizia que o esse era o meio de transporte mais seguro e só aconteciam acidentes por falha humana. O povo técnico se acostumou a responsabilizar humanos onde o problema real era o mau design. 

No caso dos pilotos, os estudiosos da época chegaram a tentar classificar os pilotos que cometiam erros como uma classe de pessoas propensas a esse tipo de comportamento. A ideia era encontrar pessoas especiais que tivessem o perfil adequado, olha só. Só depois de se dar conta de que era muito mais inteligente redesenhar as interfaces para que elas se adequassem ao modo de pensar do ser humano, e não o contrário, é que acabou nascendo uma disciplina chamada ergonomia. O princípio era que as máquinas deviam ser fáceis de operar, pois aí o desempenho do ser humano também aumentava. 

Um dos primeiros profissionais a se ocupar dessa questão foi o engenheiro e cientista cognitivo Donald Norman, que, por sinal, foi quem inventou o termo User Experience, que ia muito além da ergonomia, pois levava em consideração os aspectos psicológicos, e não apenas funcionais.

A ideia era entender porque os erros ocorriam, de que maneira os humanos pensavam e sentiam e como as máquinas poderiam ser moldadas levando em conta esse ambiente e comportamento. 

Essa linha de raciocínio acabou dando origem a outras áreas especializadas do conhecimento, como a economia comportamental, que tem a preocupação em fazer as máquinas amigáveis além de considerar que nossas mentes nunca serão perfeitas; mais do que isso, são justamente nossas imperfeições nos fazem ser quem somos. E temos que aprender a conviver com isso.

Então, projetar de forma user-friendly é adequar os objetos ao nosso redor à maneira como nos comportamos. O design não se baseia mais em artefatos,  mas em padrões de comportamentos. 

Todas as nuances de se projetar novos produtos podem ser reduzidos a duas estratégias fundamentais: 

  1. Encontrar as causas das nossas dores e tentar eliminá-las; ou
  2. Reforçar o que nós já fazemos com um novo objeto de maneira que seja tão fácil que ele se torne uma segunda natureza.

METÁFORAS

A outra coisa importantíssima que os autores estacam é a importância da metáfora. Segundo o linguista George Lakoff em conjunto com o filósofo Mark Johnson, é praticamente impossível pensar sem recorrer a metáforas, pois elas são nosso modelo mental mais básico: nossa noção sobre o mundo real.

Pense nas mensagens inbox (fechadas e protegidas, que precisam de sua atenção para existirem) e o feed (alimento), ou stream (fluxo), uma esteira de comida que vai passando e vai seguir, mesmo que você não esteja prestando atenção.  

Um exemplo importante de metáfora é o painel do carro híbrido Fusion, da Ford. 

Era necessário que o motorista prestasse atenção no nível da bateria e se o carro estava mesmo carregando. Assim, quando ele freava e a bateria carregava pela força cinética, o painel enfatizava a ação. O que aconteceu é que os motoristas começaram a frear frequente e bruscamente entendendo que estavam carregando a bateria (mas a eficiência só aumentava quando a freagem era lenta). Como explicar isso sem um vídeo ou manual, apenas intuitivamente?

Uma ideia foi o computador de bordo ficar dando pitos no motorista imprudente. Mas quem gosta de levar bronca, ainda mais de uma máquina? E considerando a cultura, dirigir um carro significa ter o controle; seria um baita estraga-prazeres colocar uma máquina dando palpites. 

A solução foi usar a cor verde para indicar que o motorista estava dirigindo bem, isso é, usando bem os recursos (dirigindo numa velocidade produtiva e freando com suavidade). 

Após muita pesquisa, os desenvolvedores resolveram usar metáforas de folhas verdes (ecologia). Quando a viagem era eficiente, folhas verdes caíam digitalmente sobre o painel. Quando não, as folhas desapareciam, indicando que o motorista não estava contribuindo com a preservação do meio ambiente. O resultado foi incrível; as pessoas deixaram de fazer viagens curtas que poderiam ser feitas a pé porque ficavam com peso na consciência ao “matar” folhas verdes… até as crianças começaram a prestar atenção na maneira como seus pais estavam dirigindo.

Uma das lições sobre metáfora é que as pessoas só vão entender se elas se importarem com o tema. Quem compra carros elétricos ou híbridos, teoricamente, ao menos, se importa.

Metáforas podem salvar vidas, como no caso do desfribilador projetado pela IDEO nos anos 1990; qualquer leigo podia usá-lo, pois só tinha três passos descritos e um botão do lado de cada um, indicando a sequência correta.

A gente quase não presta mais atenção, mas um dos fatores preponderantes, além da invenção do mouse, para a popularização dos computadores, foi a metáfora da escrivaninha, com suas pastas, seu lixeiro, sua agenda e tudo mais.

Uma vez que o objeto computador se tornou familiar, os elementos não precisaram ser mais tão literais do ponto de vista gráfico, e ficaram mais estilizados. Quando a Apple implementou a função arrastar para deslocar um arquivo ou foto, aí a intuição chegou às crianças.

O botão 1-Click da Amazon é uma das maiores revoluções da história do e-commerce. Seu impacto na Internet só perde para o botão Like do Facebook.

E a metáfora é uma coisa tão fundamental que a tentativa de grandes empresas como o Facebook de prover internet acessível para todo o planeta tem falhado pelo simples fato de que as pessoas de países subdesenvolvidos e com nível de instrução mais baixa não entendem o que é internet. Muitas pessoas acham que a Internet e o Facebook são a mesma coisa (pessoalmente já ouvi falar de alguns casos) e, por isso, não tiram todo o proveito que poderiam da ferramenta. 

EMPATIA E HUMANIDADE

Sem calçar os sapatos do usuário, não há como projetar algo que o emocione, que o motive, que seja intuitivo para ele. Por isso, os autores dizem que o design centrado no usuário nada mais é do que a empatia industrializada.

E afirmam ainda mais: que nos somos melhores em resolver um problema quando ele é interessante e desafiador. E só a empatia nos ajuda nesse ponto; pois os problemas mais interessantes não são óbvios.

Ele conta a história de uma estudante que foi trabalhar para uma repartição do governo britânico. Sua missão era descobrir porque se gastava tanto com pessoas machucadas por cortadores de grama. A moça mergulhou de tal maneira na questão que descobriu que o verdadeiro problema estava no design dos cortadores. O povo ficava distraído enquanto cortava grama, pois não era uma tarefa que exigisse muita atenção. O resultado é que passavam o cortador pelos próprios pés, causando graves acidentes. Esperta, ela logo foi atrás dos fabricantes para sugerir melhorias. Ninguém deu bola (o prejuízo não era deles e, lembrem-se, por muito tempo, o culpado de tudo era o humano fraco das ideias). No final, ela acabou num dos mais consagrados estúdios de design do mundo, a IDEO. Essa empresa, além do método design thinking, também foi responsável pelo desenvolvimento do mouse para a Apple.

CONCLUSÕES

Além de histórias ótimas, muitas dicas e curiosidades, o livro ainda tem um apêndice com o resumo da história do User Friendly, que começa em 1716, quando Luis XV resolveu colocar braços na cadeira do trono, de maneira que ficasse mais confortável. De certa forma, isso contribuiu também para a projeção visual do poder e do privilégio. Passa ainda pela invenção do volante, para controlar melhor um carro, em 1898, as câmeras Kodak, em que só era preciso apertar um botão e ela fazia o resto (1900). Tem também a participação da Disneylândia, os emojis, a Alexa, entre muitos outros artigos, livros, objetos, invenções, filmes e aplicativos. Ele termina com a Lei Geral de Proteção de Dados regulamentada pela União Europeia, em 2016.

Recomendo leitura para geral. Nada a perder, tudo a ganhar.

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