A única mulher na sala

Bom, preciso dizer que esse foi um dos livros mais impactantes que li esse ano, não só pelo conteúdo, mas por tudo o que ele representa. 

Mas vou começar contando como “Die einzige Frau im raum” (tradução livre: “A única mulher na sala”), de Marie Benedict, veio parar nas minhas mãos.

Eu estava a caminho de um encontro de mulheres de tecnologia aqui em Berlim, quando passei por uma livraria. 

Tecnologia sempre me foi um assunto muito caro; para quem não me conhece, sou eletrotécnica, engenheira eletricista, mestre em automação e controle e doutora em engenharia de produção. Trabalhei muitos anos com robótica e aviônica antes de expandir meus horizontes para as áreas do marketing e do design (hoje atuo como UX/UI designer). Estou contextualizando porque o título desse livro descreve exatamente a minha situação na maior parte da minha vida profissional: quase sempre a única mulher na sala, num mundo dominado por homens. 

Com esse histórico, indo para uma reunião de mulheres de tecnologia, como poderia deixar passar um livro desses? 

Ainda mais porque ele conta a história de Hedy Lamarr, a mulher que se recusou a desempenhar apenas o papel de ótima atriz e inventou nada menos que o equipamento precursor do Wi-Fi que hoje a gente praticamente não vive sem.

Eu já conhecia a história dessa diva da época em que tinha um canal no Youtube com mais dois amigos para falar de tecnologia, o Berlim Tech Talks (ele acabou não sobrevivendo à pandemia e às mudanças na vida dos participantes, mas deixamos quase 60 vídeos para a posteridade; veja o episódio da Hedy Lamarr clicando aqui). Mas, na verdade, muito do que a gente tinha pesquisado na época ficou mais esclarecido e aprofundado nesse livro.

A história real dessa moça é extraordinária. Eu sinceramente não sei como ainda não fizeram um filme sobre essa vida incrível com o roteiro impecável; até agora só temos documentários. É claro que esse é um romance histórico e não uma biografia; então, algumas partes a autora imaginou e outras ela criou — mas é tudo baseado em fatos com registros confirmados.

Depois desse preâmbulo enorme, vamos à história, que começa com Hedy (apelido de Eva Maria) Kiesler apresentando-se em um teatro de Viena, sua cidade natal. Ela tem 18 anos e é a atriz principal fazendo o papel da imperatriz austríaca Sissi. Na plateia, um admirador envia dezenas de buquês de flores no camarim e a convida para jantar. 

Ela é muito novinha e fica receosa de sair com um estranho (com razão), então recusa o convite. Mas o sujeito insiste e faz o mesmo em todas as sessões da temporada. Até que ele vai à casa dela e pede autorização para seus pais.

O ano é 1933 e a Europa está em convulsão, com uma enorme crise se aproximando. O pai de Hedy é diretor de um banco e ela é filha única (a mãe é pianista e compositora). O tal admirador é um dos homens mais ricos e poderosos da Áustria, o fabricante e vendedor de armas Fritz Mandl.

Seu interesse comercial é ver a Áustria independente, pois o governo é seu maior cliente. Por esse motivo, no início da história, ele prefere se aliar a Mussolini (o fascista italiano, porém, até esse ponto, a favor da independência do país) do que a Hitler (que queria anexar a Áustria). 

Eis que o pai de Hedy tem uma longa conversa com ela, dizendo francamente que uma recusa pode prejudicar a família toda, inclusive porque, se Hitler realmente continuar se dedicando tão intensamente a perseguir e matar os judeus, Fritz pode ser uma pessoa importante para defendê-los, uma vez que, assim como a família de Hedy, ele também tem origens semitas.

Importante lembrar que Hedy tem apenas 18 anos e o homem, de 33, sabe como seduzir uma moça com sorrisos, flores, promessas e jantares. Com a pressão do pai e desse homem, a jovem acaba sucumbindo e aceita se casar com ele. Pior erro da vida.

O tal Fritz se revela um abusador do pior tipo; depois do casamento ele simplesmente a trata como um objeto de decoração e a proíbe de sair de casa. Ela só existe para satisfazer aos desejos sexuais dele e receber convidados quase que diariamente nas festas, bailes e jantares no seu palácio ricamente decorado. 

Ele a afasta de todos os seus amigos do teatro, proíbe a moça de continuar atuando, compra e destrói todas as cópias de um filme onde ela aparece nua e na primeira cena de orgasmo na história do cinema (Hedy aceitou o papel sem ler os detalhes e acreditou que abordagem seria mais de arte conceitual onde tudo seria filmado bem de longe — mas ela era tão nova que o diretor teve que espetá-la com um alfinete para ela fazer a cena — ela até tentou voltar atrás, mas teria que pagar todo o prejuízo).

O sujeito a proíbe de sair de casa; a Sra. Hedy Mandl não pode ir a lugar nenhum; até para visitar os pais ela precisa de autorização expressa dele.

Como Hedy era tratada como uma peça de decoração, ela sempre participava das reuniões de negociações e estratégia, inclusive as técnicas sobre a construção de armas. Ninguém sonhava que aquela beldade estivesse prestando atenção ou entendendo algo, pois, como uma mulher lindíssima e ainda por cima, atriz, poderia ter alguma noção?

O que eles não sabiam é que a moça sempre se interessou pelo funcionamento das coisas, por física e matemática, a tal ponto que, antes de estudar artes dramáticas (a convite de um diretor que reconheceu sua extraordinária beleza e seu potencial como atriz), ela tinha começado a estudar engenharia. 

E esse mundo nunca deixou de fasciná-la. Como tinha que passar o dia todo em casa sem fazer nada (tinha muitos empregados na mansão para fazer tudo), ela passava o tempo na enorme biblioteca estudando e aprendendo mais a respeito.

Mas sua situação era cada vez pior; os episódios de abuso foram ficando cada vez piores (ela chegou a apanhar várias vezes). Houve uma vez em que Hedy recebeu Mussolini para um jantar onde ele foi nojento dizendo que assistia o filme onde ela aparecia nua todos os dias insinuando uma possibilidade de encontro.

O tempo foi passando e o casamento cada vez mais insustentável, principalmente no ponto em que Fritz, percebendo que Mussolini ficava cada vez mais perto de Hitler, mandou às favas a sua preocupação com a independência da Áustria e resolveu tomar as atitudes que lhe garantissem mais poder e dinheiro, mesmo à custa da vida dos judeus (ele sempre escondeu suas origens e não se considerava um deles). Fritz, sem nenhum escrúpulo, tornou-se aliado do bigodinho. E Hedy assistindo tudo, sem poder fazer nada.

Nessa altura, o pai de Hedy já tinha morrido do coração, a mãe, ainda preocupada com as aparências, ignorava suas angústias dizendo que ela deveria cumprir suas obrigações de mulher sem reclamar, de maneira que ela não se sentia mais obrigada a seguir os desejos do pai, de continuar com aquele monstro para proteger a família.

Não fazia mais sentido ficar à mercê de um homem que ameaçava não apenas a sua existência, mas a de todos os judeus.

Ela fez planos para fugir; quase conseguiu uma vez, mas não deu certo e foi flagrada na estação de trem. Apanhou muito e piorou ainda mais a sua situação na gaiola de ouro.

Depois de 4 anos torturantes, Hedy usou seu talento de atriz para traçar um plano. Enquanto o marido recebia convidados para um jantar (ela alegou que estava se sentindo mal e, como ele queria um filho, achou que fosse uma boa notícia), conseguiu drogar sua dama de companhia e vestiu suas roupas, disfarçando-se como se fosse ela. Saiu pela porta dos empregados (estava tudo muito movimentado por conta do jantar) e foi até a estação de trem de bicicleta, para onde pegou um trem para Paris e depois Londres.

Essa parte foi bem emocionante, pois imagina só o risco se ela fosse pega pela segunda vez fugindo de um homem tão poderoso e influente!

Bom, em Londres ela conseguiu uma reunião com um produtor de cinema que ofereceu a ela um contrato de 7 anos em Hollywood com um salário ridículo (ele sabia a situação das atrizes europeias e queria mesmo se aproveitar).

Pois a linda vendeu um colar, comprou uma passagem para o mesmo navio que ele, apareceu no jantar deslumbrante com o único vestido que conseguiu levar e fez ele quintuplicar a oferta, que ela aceitou. Foi então que nasceu a estrela Hedy Lamarr (o nome foi escolhido pelo produtor).

Em Los Angeles, esse indivíduo super abusivo, também a tratava como um objeto para revenda, mas Hedy foi contornando a situação e conseguiu bons papeis (ela já estava mais escolada e era inteligentíssima). Casou-se algumas vezes, adotou uma criança, mas sempre com um sentimento de culpa por ter abandonado o seu país e querendo ter contribuído mais para evitar a guerra.

Nas suas horas de folga ela continuou estudando (detestava festas; sua cota já tinha sido preenchida no primeiro casamento) para tentar encontrar uma solução para o problema da comunicação dos torpedos controlados por rádio, que podiam ser interceptados pelos inimigos.

Um dia, na casa de um amigo, ela encontrou um compositor americano cuja obra revolucionária tinha conhecido em Paris anos antes. Ele a convidou a tocar piano em dupla e, durante a audição, ele foi trocando de música e ela tinha que ir acompanhando rapidamente, como uma brincadeira; só conseguiu porque tinha um vasto repertório.

Foi aí que ela teve uma ideia. Imediatamente convidou-o para ir até a sua casa no dia seguinte onde ela explicaria melhor. 

A questão era a seguinte: os sinais de rádio enviados aos torpedos podiam ser facilmente interceptados pelos inimigos. Mas se eles alternassem e misturassem a frequência numa sequência pré-conhecida pelo emissor e pelo receptor, como as músicas tocadas em rápida sequência no piano? O inimigo não conseguiria desembaralhar o sinal e não conseguiria interceptar esses sinais cifrados. 

Obviamente é mais complexo que isso, mas essa era a ideia central. O músico não entendeu onde ele podia contribuir, mas uma vez que ele entendia de construção de instrumentos musicais e música é basicamente matemática pura, ele podia ajudar em muito na construção de um protótipo mecânico que demonstrasse a ideia; depois passariam ao sinal de rádio propriamente dito.

Bom, ambos trabalharam intensamente no projeto até que enviaram ao concurso que o governo promoveu para angariar ideias que ajudassem na guerra. Eles foram selecionados na associação científica, mas logo depois recusados pela marinha americana.

Lendo as notícias de jornal e inconformada porque eles continuavam perdendo muitos torpedos, Hedy solicitou uma audiência em Washignton para pedir uma explicação, já que a tecnologia que eles tinham desenvolvido podia resolver a questão.

A resposta do responsável só não é surpreendente porque fui por muitos anos a única mulher na sala. Ele respondeu que o sistema era bom, mas não iria ser usado porque os marinheiros não iriam confiar num equipamento desenvolvido por uma mulher. Muito menos uma atriz, e lindíssima. Que ela contribuiria muito mais vendendo beijos em leilões para angariar dinheiro para a guerra.

Eu me lembrei da minha formatura em engenharia elétrica, onde me candidatei para ser a oradora da turma, e perdi para um rapaz que ninguém gostava muito e sequer se destacava na oratória. A explicação de um colega muito próximo: “Sim, você faria um discurso muito melhor que o dele, mas seria uma vergonha para uma turma de engenharia ser representada por uma mulher; os pais, parentes e amigos deles estariam lá e iriam ver. Então tive que votar nele.”

Bom, ela ficou indignadíssima (como eu). Mas no final, o órgão responsável pelo registro de patentes aceitou o projeto, como muitas outras invenções (ela desenvolveu um semáforo, uma coleira especial para cachorros e um monte de outras coisas — a cabeça da moça não parava).

A verdade é que seu sistema foi usado como base para a comunicação sem fio usando ondas de rádio ou infra vermelho, que hoje conhecemos por Wi-Fi (Wireless Fidelity). Ela é a base para o funcionamento dos nosso computadores, celulares, e, em última instância, da Internet das Coisas. Essa mulher fez uma baita diferença no mundo e nunca foi reconhecida porque não se contentou em caber numa caixinha: ela era linda, curiosa, criativa, atriz e gênia!

Quer mais uma curiosidade? Por muitos anos o rosto dela foi a propaganda do software Corel Draw (ela lutou na justiça, mas nunca recebeu seus direitos de imagem). 

Enfim, a mulher foi sacaneada de todas as formas possíveis e teve um fim bem triste. Mesmo assim, só deixou coisas boas para o mundo.

Mas o que não me conformo é que essa baita história de vida ainda não tenha rendido um filmaço! Como assim, gente?

A boa notícia é que o livro já foi traduzido para o português; só não entendo porque a tradução ficou “A única mulher”, sendo que “A única mulher na sala” traz muitos outros significados que a própria autora cita várias vezes durante a história. Qual o sentido de cortar a frase fazendo-a perder todo o sentido original?

Bom, não sei como ficou o resto. Mas se quiser conhecer mais detalhes, é só comprar o livro aqui, na Amazon do Brasil.

Leave A Reply

* All fields are required