Doces bárbaros
Consegui umas horinhas para ficar “pendurada” numa internet decente, então lá vão minhas primeiras impressões dessa terra geladinha 🙂
Estou descobrindo de uma maneira muito divertida o quanto é possível um povo pensar diferente e, mesmo assim, não ser nenhuma tragédia para nossas próprias referências.
Os alemães raciocinam, olhando daqui da janelinha onde estou, do jeito mais complicado que se pode imaginar na abordagem de um problema (deve ser influência da língua, que é de dar nó na própria). As coisas parecem bem feitas e resolvidas, mas, para uma tupiniquim que vê de fora, dá a impressão que tinha um jeito mais simples de fazer a coisa.
Peguemos o exemplo da prefeitura de Berlin. Você tem que ir até lá para se apresentar como morador da cidade; a ideia é ótima, pois eles não precisam fazer o censo anual e têm sempre dados atualizados. Você se apresenta e, entre outras coisas, ganha o direito de estacionar o carro na frente da sua casa sem pagar a “zona azul” (nem donos de Porsches, Ferraris, Audis, Mercedes e BMWs têm cacife para pagar uma garagem coberta por aqui; quase nenhum prédio tem esse luxo e esses brinquedinhos lindos dormem todos na rua); é pré-requisito também para se registrar no seguro-saúde, entre outras povidências burocráticas. Para o morador é bom e para a prefeitura também, já que o dinheiro é distribuído para cada cidade segundo sua população. Belê. Mas como se marca a tal entrevista de apresentação? Bom, você vai no site (complicadíssimo) e, num canto, consegue a informação tão preciosa. Está tudo lá explicadinho, em váááárias páginas, como você pode marcar a tal audiência em apenas 11 (eu disse ONZE) passos! E o pior (e talvez, melhor), é que eles falam isso sem nenhuma sombra de ironia (acho que não existe ironia em alemão); estão candidamente convencidos que uma coisa que pode ser feita em apenas míseros 11 passos é muito simples mesmo.
Gostou? Pois é porque você ainda não sabe como comprar uma assinatura anual para andar de metrô. A ideia é sensacional: como morador, você pode comprar um bilhete semanal, mensal ou anual, com descontos proporcionais (para cada cidade é diferente). E o bacana é que eles respeitam tanto os usuários que, como compensação por causa das obras de reforma que estão obrigando a aumentar o número de conexões em alguns trechos (meu caso), a mensalidade de novembro, mês da inauguração, não será cobrada. Não é o máximo?
Mas vamos lá na página da administradora dos transportes para ver como a coisa funciona? Pois agora o buraco é mais embaixo: o manual resumido, que eles chamam de algo equivalente a “vapt-vupt”, tem, reflitam, 23 (vinte e três) páginas! Não me perguntem sobre a versão completa, fiquei com medo de ver. O Conrado, meu personal translator (meu alemão ainda não dá nem para ler a capa), traduziu apenas as páginas iniciais do tal “folheto” e olha só, os caras conseguem escrever uma tese completa a partir de um manual de uso. Acompanhe.
O ticket depende da zona da cidade onde você vai andar e da sua categoria de passageiro; há aguns casos especiais que dependem também do horário. Há tickets para andar apenas 3 estações ou 3km (o que vier primeiro); tickets que duram 2 horas para qualquer meio de transporte, desde que o deslocamento seja em apenas um sentido; tickets para grupos de até cinco pessoas ou uma pessoa e um cachorro (se forem três pessoas e um cachorro, é outra categoria de ticket); tickets para grupos com até 3 crianças de 6 a 14 anos que podem andar apenas de 2a a 6a feira entre 20 horas e 3 da manhã (essa categoria pode estar inclusa no cartão anual dos pais); tickets para crianças no primeiro grau; tickets para irmãos de até 16 anos de crianças que frequentam a escola primária (limite de um irmão por pirralho); tickets para pessoas que levam carrinhos de bebê (cada pessoa pode levar apenas um carrinho, adicionais pagam separado); tickets para bicicletas, que também podem ter assinatura anual; tickets anuais que prevêem a inclusão de um cachorro (se for mais de um, tem que pagar o ticket separado); porém, se o cachorro estiver dentro de uma bolsa, entra como bagagem de mão e não paga; tickets especiais de férias para estudantes de primeiro grau; enfim, as variáveis parecem infinitas. Fico aqui imaginando o pessoal da companhia de transportes em um braistorming usando técnicas de variação cega em design thinking para imaginar todas as possibilidades pensáveis e seus respectivos desdobramentos. Também fico curiosa em ver o algoritmo sinistro que calcula o preço de cada tarifa, você não? Aparentemente, depois eles pegam um estagiário e mandam o coitado fazer o manual. Tudo isso na mais pura e clara língua de Goethe.
E tem mais; eles tentam colocar todas essas informações cuidadosamente organizadas e hierarquizadas no display da maquininha que vende os tíckets (aí entra uma tropa de estagiários, porque tem tradução para meia dúzia de línguas — antes que alguém pergunte, não tem português, que é considerada língua exótica).
O resultado é que quando estive aqui no ano passado paguei uma multa de € 40 porque comprei o ticket errado (o guarda não quer nem saber; ele alega que as informações estão todas lá, para quem quiser; o que são 23 meras páginas para quem está atrasado?).
Bom, para consolidar o conhecimento adquirido até aqui, imagine que você está com seu marido e dois filhos, acompanhados do cachorro da família; uma criança está no carrinho de bebê e a outra, de 12 anos, está de férias; todos estão cansados porque furou o pneu da bicicleta do mais velho. São 21 horas e neva lá fora, sendo que você está na área A e quer ir para a C; o trajeto tem 16 km, duas conexões de trem, uma de ônibus e levará 50 minutos.
Agora responda rápido: que ticket você compra?
Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br
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